Resumo: Os escritos críticos e literários do autor indígena brasileiro Daniel Munduruku (1964)
atribuem papel proeminente à imagem do contador de histórias. O conjunto de sua obra oferece
valiosa contribuição para a literatura indígena como um todo. Mais do que um ciclo de histórias
e memórias coletadas de fonte oral, o mosaico de narrativas autobiográficas e ficcionais,
ensaios e contos escritos por Munduruku formam um detalhado retrato de sua herança cultural
indígena. O propósito deste estudo é discutir como Munduruku apresenta o ato de contar
histórias segundo a tradição oral indígena. A análise sugere que, além de expressar
ensinamentos que o autor deseja transmitir ao leitor não-indígena, o contador de histórias do
povo Munduruku é essencial para definir a identidade e o senso de pertencimento da criança
indígena em relação à sua comunidade de origem e sua herança cultural.
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Comparada ao modelo europeu, a tradição oral é valorizada de modo diverso
entre os povos indígenas, cuja filiação à cultura escrita é recente. Distinguindo
o contador de histórias, como voz remanescente da tradição oral, a meta deste
artigo é comentar o ato de narrar histórias, um dos pilares da obra de Daniel
Munduruku, apoiando-se nos escritos ficcionais e não-ficcionais do autor. O
objetivo é expor como o autor apresenta e define o contador de histórias, na
função de expoente e repositório da cultura indígena.
“A escrita é uma novidade para os povos indígenas brasileiros”, arguiu
Munduruku (2018a) que, na condição de autor indígena e educador, refere ser
essencial: “[...] começar a chamar esses povos pelo nome, dizer quem eles são
de fato, onde estão, como vivem, e por que, na nossa contemporaneidade,
existe um massacre dessas populações” (MUNDURUKU, 2016b). Denunciar a
situação atual dessas populações e expor como elas vivem e se expressam é um
dos compromissos da obra de Munduruku:
[...] os povos indígenas sempre foram considerados em transição, ou
seja, estiveram numa posição de inferioridade com relação aos demais
brasileiros. Até 1988 nossa gente era alvo de políticas públicas cujo
principal objetivo era fazer com que fôssemos integrados à sociedade
brasileira. Por essa ótica, ganharíamos o status de “civilizados” tão
logo ingressássemos no mercado de trabalho, oriundos de um ensino
técnico que nos daria os instrumentais para nos tornarmos mão de
obra barata. Era a escola profissionalizante pela qual todos os
indígenas tinham de passar para poder ter direito à sua carteira de
trabalho e a uma identidade nacional. (MUNDURUKU, 2018a)
Histórias que eu vivi e gosto de contar
Autor: Daniel Munduruku
Ilustrações: Rosinha Campos
Editora Callis
Histórias que Eu Vivi e Gosto de Contar, de Daniel Munduruku, com ilustrações de Rosinha Campos, é um daqueles livros que têm a sutileza de integrar vários aspectos da literatura.
Os contos apresentados levam o leitor a unir o real ao maravilhoso. Isso significa que seres criados pelo imaginário (como Curupira, Surucucu, Mãe-d’água e outros) tornam-se tão verdadeiros como outros personagens que fazem parte do real, como a presença do próprio autor, nas narrativas.
Vale a pena salientar também que há bastante espaço na leitura para a análise da matéria literária, cuja base está fundamentada nos valores ideológicos (fi losofi a de vida, padrões ideais de comportamento, consciência de mundo, aspirações, metas a serem alcançadas, etc.) presentes na obra. É possível aproximar-se do universo do povo indígena do qual o autor faz parte. Ao longo da obra, estão presentes aspectos da cultura, das tradições e dos costumes, assim como a construção ética e moral desse povo.
Dessa maneira, pode-se afi rmar que tais elementos (matéria literária e valores ideológicos) estão no primeiro plano da obra, e, em segundo plano, está o conteúdo manifesto. Portanto, o autor procurou dar ênfase ao aspecto literário das narrativas, embora se possa também observar a presença do aspecto didático ao longo do texto.
Em relação às ilustrações, pode-se dizer que foi uma decisão acertada restringir a sua quantidade, por ser interessante que as crianças possam desenvolver a imaginação e a criatividade sobre o espaço e o tempo correspondentes às aventuras apresentadas. Essa exploração pode acontecer por estarem diante de um espaço e tempo desconhecidos, já que é provável que a maioria dos leitores nunca tenha morado em uma fl oresta. Assim, solicitar que elas pensem como é a vida na fl oresta, que o autor apresenta com tanta propriedade, torna-se uma atividade extremamente estimuladora.
Por meio da leitura, ainda é possível trabalhar o projeto cultural da obra, ou seja, o encantamento pela literatura, e também o projeto de vida do livro, isto é, encontrar um sentido para sua própria vida a partir da leitura do texto. Portanto, os textos e as imagens do livro podem ser vistos além de um mero instrumento de transmissão cultural, mas devem ser valorizados como um poderoso recurso de integração e respeito entre culturas, passando, a partir dessa postura, para a prática no mundo em que vivemos.
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