Passagem do Levítico - Ordens para o descanso da terra e a devolução das terras aos proprietários originais a cada jubileu.
Interpretação - Pode ser interpretado como uma base para a promoção de práticas sustentáveis.
A partir de Levítico 25, analisa o significado essencial da terra para o ser humano, em seus diversos aspectos. O texto bíblico, assim como a terminologia usada para designar a terra, demonstram que há uma conaturalidade entre as pessoas e a terra. A partir dessa relação, toda a natureza é beneficiada, em vista de uma ecologia total. As leis sobre o ano sabático e o ano jubilar visam garantir a posse e o uso da terra de maneira justa e equitativa. Segundo essa visão da Bíblia Hebraica, uma outra relação com a terra é possível, com uma mística de respeito à vida em sua totalidade. Para realizar este ideal de direito à terra como direito à vida, Levítico 25,23-24 estabelece princípios fundamentais, como: não vender a
terra para sempre, para evitar o empobrecimento; visto que a terra pertence a Deus, ela é um bem sagrado; os seres humanos são inquilinos e não proprietários na terra; caso alguém perca a sua terra, terá o direito de resgatá-la.
A história do povo bíblico praticamente se confunde com a luta pela conquista da terra. A posse da terra é regida por princípios que asseguram o seu bom uso, bem como a relação harmoniosa entre o ser humano e a natureza, a fim de garantir o bem-estar das pessoas, e a convivência justa em sociedade. Regidas por uma mística diferenciada, algumas leis acentuam o direito à terra como direito fundamental ao sustento e à vida. Entre a realidade do antigo Israel e a do Brasil atual, há semelhanças e diferenças.
A luta pela terra, entretanto, é um paradigma constante. Significa que serve como exemplo, modelo ou protótipo. Nesse sentido, pode iluminar a realidade atual, como inspirou a situação histórica de muitos povos e culturas. Considere-se que a Bíblia é sagrada, canônica, normativa, é palavra de Deus para o seu povo.
A luta pela conquista e pela posse da terra parte de princípios diferentes, seja na Bíblia, seja na realidade do mundo atual. Enquanto lá a mentalidade é religiosa com olhar de fé e transcendência (teocêntrica), aqui ela é materialista e se concentra no ser humano (antropocêntrica). Enquanto lá se visa o bem-estar comunitário e a integração dos pobres (comunitária), aqui o olhar está centrado no lucro a qualquer custo (capitalista e egocêntrica). Enquanto lá a preservação da natureza é prioritária( ecológica), aqui a exploração desrespeita o meio ambiente (predatória). Em vista destas diferenças de ótica, a Bíblia serve como inspiração constante para a realidade hodierna.
A terra é elemento essencial para a vida do ser humano. Falar de terra é diferente de discutir sobre bens de consumo. A humanidade vive sem geladeira, televisão, automóvel, mas não vive sem a terra. Já os filósofos gregos pré-socráticos consideram os quatro elementos da natureza, terra, água, ar e fogo, como fundamentais para a sobrevivência humana.
A TERRA EM TERMOS BÍBLICOS
Para designar o vocábulo terra, a Bíblia Hebraica possui as palavras terra fértil (’adamah) e terra habitável (’erez).
A terra fértil (’adamah) se refere mais ao campo como solo arável ou cultivável, isto é, ao húmus. A raiz da palavra provavelmente é ’adam que originalmente significa vermelho, aplicada a solo vermelho e cultivável. Em seguida, o sentido se deslocou para ’adam como nome próprio do primeiro homem, Adão. Daí se deduz a conaturalidade entre o ser humano e a terra, conforme Gn 2,7, em que Deus modela o homem (’adam) da argila do solo, isto é, da terra fértil (’adamah) (COPPES, 1998).
A terra habitável (’erez) é a terra em oposição ao céu ou em oposição à água, e designa também região ou país. Sempre construído em feminino, o substantivo talvez conserve a reminiscência da concepção da mãe terra. É a quarta palavra mais utilizada no Antigo Testamento, com 2.504 ocorrências. A concepção segundo a qual a terra é criação de Deus, juntamente com o céu, percorre inúmeras páginas da Bíblia (SCHMID, 1978).
Outros termos hebraicos se referem a pó ou terra seca (’apar), a porção ou campo (helqah) e a solo árido ou terra seca (yabbashah) ou ainda a campo, terra, campo aberto (sadeh) (COPPES, 1998).
Na tradução grega, chamada Bíblia dos LXX ou Septuaginta, os termos terra e mundo ganham dois equivalentes, terra fértil (ge) e terra habitável (oikumene). Há ainda campo (agros) e mundo ou ornnamento (kosmos).
O Novo Testamento mantém as palavras terra cultivável ou planeta (ge) e terra habitada (oikoumene). Emprega ainda campo (agros), solo ou poeira (chous) e mundo (kosmos) (MORGENTHALER et al., 2000).
A TERRA EM LEVÍTICO 25
Diante de uma temática tão fundamental e tão extensa, cabe, certamente, um recorte mais específico, que possa caber dentro de um artigo. Por isso, a opção se concentra sobre Lv 25, um texto que concentra vários aspectos e possibilita dialogar com outros textos bíblicos.
A organização do texto de Lv 25 praticamente se impõe pela sequência dos assuntos, e é seguida pela Bíblia de Jerusalém, bem como pelas demais traduções. As subdivisões sãoas seguintes, conforme Ibañez Arana (1974, p. 197-8):
Introdução para motivar a conexão das leis com o Sinai (v. 1-2a);
1) Ano sabático (v. 2b-7).
2) Ano jubilar (v. 8-17).
3) Garantia divina perante as dificuldades (v. 18-22).
4) Casos de empobrecimento de israelita:
1º) Necessidade de venda e direito de resgate:
a) de terra (v. 23-28);
b) de casas (v. 29-31);
c) de casas de levitas (v. 32-34).
2º) Empréstimos: norma geral (v. 35) e proibição de juros (v. 36-38).
3º) Israelita que se vende para pagar suas dívidas:
a) a outro israelita (v. 39-41.42-43); escravos estrangeiros (v. 44-46);
b) a um estrangeiro (v. 47-55).
Como se pode observar por este elenco, há aí uma convergência de diversas leis, de épocas diferentes. A proposta deste estudo, entretanto, é de fazer uma leitura sincrônica, isto é, tomando o texto em sua redação final, como hoje se apresenta à nossa leitura. Outros estudos específicos analisam as diversas camadas literárias, a formação dos textos e os momentos de sua aplicação. Nossa análise é temática e aproxima textos de diversas proveniências, gêneros e matizes, em vista de uma visão conjunta e abrangente.
Essas leis visam uma sociedade igualitária e livre de opressão. “Os redatores as fundam no sentimento de solidariedade nacional, na propriedade de Yhwh sobre toda a terra de Canaã, no respeito a Yhwh vingador do pobre e no agradecimento a Yhwh, que livrou Israel da escravidão do Egito” (IBAÑEZ ARANA, 1974, p. 197).
Na base da proposta de Lv 25, está a motivação de uma ecologia total, que considere a vida das pessoas, com seu direito básico à terra e em harmonia com a sociedade e com a natureza. “A conservação dos recursos naturais e outros que é preceituada por esta legislação forma a base da boa prática agricultural e ecológica” (HARRISON, 2011, p. 206).
O ideal de uma ecologia abrangente se baseia no direito à posse da terra e no respeito a toda a natureza, mas visa, no seu objetivo final, o bem-estar das pessoas, numa convivência livre, com base no direito e na justiça. De acordo com Douglas (1999, p. 242), “Lv 25 dá a grande proclamação de liberdade”. E logo adiante a autora explica: “Liberdade significa que ninguém pode ser permanentemente escravizado, que as dívidas devem ser canceladas e que a terra deve retornar para seus donos originais no ano do jubileu” (DOUGLAS, 1999, p. 243).
Por isso, Levítico insiste sempre na experiência do êxodo, que marca a ação original de Deus em favor da libertação do seu povo.
Alguns destaques temáticos, com base em Lv 25, são apresentados a seguir, para destacar o direito à terra como direito à vida e ao bem viver.
ANO SABÁTICO
“Quando entrardes na terra que eu vos dou, a terra guardará um sábado para o Senhor” (Lv 25,2)
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Conforme Lv 25,2-7, a cada sete anos a terra deve ter um ano de repouso e, com ela, os vinhedos e os cereais. Esse ano de descanso coloca em igualdade proprietários, servos e servas, empregados e hóspedes. Os benefícios se estendem ao gado e aos animais.
Essa lei do ano sabático é, certamente, uma das leis mais sábias encontrada na Bíblia. Ela assegura o descanso da terra e a reposição de seus nutrientes, estende os benefícios aos animais e assegura a condição justa e igualitária dos seres humanos (REIMER, 2006).
Essa lei do ano sabático está inserida no chamado “Código de Santidade” (Lv 17- 26) e apresenta algumas características próprias, como um sábado “em honra ao Senhor” (v. 4) com caráter “solene” (v. 5). O descanso da terra é motivado, portanto, pelo caráter sagrado do tempo santo (REIMER; RICHTER REIMER, 1999).
Além de ser amplamente testemunhada na Bíblia, a lei do ano sabático é antiga e praticada pelos povos vizinhos a Israel. Com aplicações no antigo Egito, a prática do descanso da terra já devia ser comum em Canaã, com motivações agrícolas e religiosas (GARMUS, 1998).
O ano sabático é um espelho do dia sabático, conforme prescrito no “Código da Aliança”: “Trabalharás durante seis dias, e farás toda a tua obra. O sétimo dia, porém, é o sábado do Senhor teu Deus” (Êx 20,9-10). Assim como a cada seis dias de trabalho segue-se um sétimo dia de descanso para todas as pessoas e animais, sejam livres, escravos ou estrangeiros, assim também, a cada seis anos de cultivo, deve se seguir um sétimo ano de repouso completo para a terra. “Durante seis anos semearás a tua terra e recolherás os seus frutos. No sétimo ano, porém, a deixarás descansar e não a cultivarás, para que os pobres do teu povo achem o que comer, comam os animais do campo e o que restar. Assim farás com a tua vinha e com o teu olival” (Êx 23,10-11).
O próprio termo sábado (shabat) agrega os três significados, sétimo, descanso e sábado. Possui, como visto, diversas motivações, entre elas, repouso para pessoas e animais, solidariedade para com os pobres, memória da libertação da escravidão do Egito, culto a Deus, descanso do próprio Criador e perdão das dívidas.
A lei do repouso sabático parte da concepção segundo a qual a terra possui direitos próprios, assim como os animais e os seres humanos. Esse mesmo conceito precisa ser recuperado na sociedade pós-moderna, em que a terra passou a ser objeto de exploração. A lei bíblica irmana terra, animais e pessoas, como criaturas divinas, de direitos plenos. Assim como Deus ouve o clamor do povo oprimido (Êx 3,7), assim também ouve os gritos de socorro da terra explorada. O profeta Jeremias se pergunta: “Até quando se lamentará a terra, e ficará seca a erva de todo campo? Por causa da maldade de seus habitantes perecem os animais e os pássaros” (Jr 12,4).
Na época do Novo Testamento o sábado aparece como uma instituição formal e
legalista. Nesse contexto se entende a frase de Jesus, para retomar o seu sentido original: “O
sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Mc 2,27).
Na história do Brasil, durante o triste período da escravidão, registram-se alguns casos de aplicação da lei do ano sabático, com a libertação de escravos a cada sete
anos, mas são casos tão raros que se perdem no esquecimento histórico (TERRA, 1983).
O sábado para os terrenos, com rodízio do cultivo agrícola, é prática comum entre pequenos agricultores.
ANO JUBILAR
“Declarareis santo o quinquagésimo ano e proclamareis a libertação de todos os moradores da terra. Será para vós um jubileu: cada um de vós retornará a seu patrimônio, e cada um de vós voltará ao seu clã” (Lv 25,10).
Lv 25,8-12 prescreve o ano do jubileu, o sábado dos sábados, isto é, a cada quarenta e nove anos, ou seja, sete vezes sete anos, haverá um ano especial chamado jubileu. A palavra jubileu vem de yobel, espécie de berrante ou trombeta feita de chifre de carneiro, que servia para dar o toque que anunciava a abertura do ano do jubileu, além de várias aplicações históricas, segundo Gorgulho (1998).
A trombeta ou yobel foi tocada em duas situações especiais para a formação do povo de Israel. A primeira foi no momento da aliança do Sinai: “Quando soar o chifre de carneiro (yobel), então subirão à montanha” (Êx 19,13). A segunda ocasião foi diante das portas de Jericó, ao tomar posse da terra prometida: “E quando tocarem com fragor o chifre de carneiro (yobel), todo o povo lançará um grande grito de guerra, e as muralhas da cidade cairão e o povo subirá, cada um no lugar à sua frente” (Js 6,5).
Jubileu possui, portanto, sentidos diversos. Propõe o ideal do perdão das dívidas, restituição das propriedades aos donos originais, libertação dos oprimidos, enfim, restabelecimento da justiça. Jubileu relaciona-se com a santidade de Deus e, consequentemente, com a sacralidade da terra (Lv 25,10), bem como com o dia das Expiações (v. 9), e a libertação de todos os moradores da terra (v. 10). O profeta Ezequiel também trata o ano jubilar como “ano da liberdade”, em alusão à alforria do escravo (Ez 46,17). O mais específico, porém, do ano jubilar é o retorno de cada qual ao seu patrimônio e ao seu clã (Lv 25,10). Esse retorno constitui o ideal de retribalização, isto é, de volta ao sistema tribal em que cada família possuía a sua propriedade. “Neste ano do jubileu, tornará cada um à sua possessão” (v. 13) (REIMER; RICHTER REIMER, 1999, p. 95-6).
O ano do jubileu repropõe, de maneira enfática, o ideal ecológico de respeito à terra. Trata-se da proposta de repouso, para recuperação da fertilidade do solo. “O quinquagésimo ano será para vós um ano jubilar: não semeareis, nem ceifareis as espigas que não forem reunidas em feixe, e não vindimareis as cepas que tiverem brotado livremente” (Lv 25,11).
Quando Jesus anuncia, na sinagoga de Cafarnaum, a sua missão fundamental, retoma o texto de Is 61,1-2 que proclama evangelizar os pobres, libertar os presos, abrir os olhos aos cegos, libertar os oprimidos e “proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,19). Este “ano de graça” se refere exatamente ao ano do jubileu, que visava realizar, basicamente, todo o ideal aí sintetizado (LOCKMANN, 1998).
Ao longo da história do Cristianismo, o ano do jubileu teve aplicações diversas, que encontram sua realização no chamado ano santo.
OUTRA RELAÇÃO COM A TERRA É POSSÍVEL
“Neste ano do jubileu, tornará cada um à sua possessão. Se venderes ao teu compatriota ou dele comprares, que ninguém prejudique a seu irmão! Segundo o número dos anos decorridos depois do jubileu, comprarás de teu compatriota e segundo o número dos anos das colheitas, ele te estabelecerá o preço da venda” (Lv 25,13-15).
Lv 25,13-17, em conformidade com a legislação do jubileu, propõe o retorno da terra aos proprietários originais, conforme a distribuição tribal nas origens de Israel. Trata-se de uma reforma agrária radical, a cada cinquenta anos, em vista de uma verdadeira justiça agrária (SOUZA, 1985).
A lei visa evitar o acúmulo de terras nas mãos de poucos proprietários, para combater o latifúndio, como denunciam os profetas: “Ai dos que juntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço disponível, até serem eles os únicos moradores da terra” (Is 5,8; Mq 2,2). A justa distribuição da terra foi uma das mais árduas lutas dos profetas bíblicos (KESSLER, 2001).
O ideal da distribuição igualitária da terra motiva a construção de um projeto de justiça, presente na origem do próprio povo de Israel. Esse ideal de sociedade justa e igualitária é relatado no recenseamento do povo, como palavra de Deus a Moisés: “A estes a terra será distribuída em herança, segundo o número dos inscritos. Àquele que tem um número maior tu darás uma propriedade maior e àquele que tem um número menor tu darás uma propriedade menor; a cada um a sua herança, em proporção ao número dos seus recenseados” (Nm 26,53-54).
Em torno ao ideal da distribuição da terra às tribos de Israel, cria-se uma mística com nova mentalidade e diversas motivações teológicas.
O princípio fundamental para o direito à posse da terra, segundo a Bíblia, é a partilha justa e equitativa da terra. Este ideário de uma reforma agrária ficou gravado na memória
como recordação do primeiro passo do surgimento de Israel, quando a terra foi distribuída
entre as tribos, logo da conquista de Canaã. Praticamente todo o livro de Josué se ocupa em
explicar a tomada da terra e sua distribuição entre as tribos: “Agora, pois, divide a terra como
herança entre as nove tribos e a meia tribo de Manassés: desde o Jordão até o Grande Mar ao
ocidente, tu lhes darás; o Grande Mar será o seu limite” (Js 13,7).
Uma segunda motivação para a posse da terra é o conceito de herança (PALMA,
2002). Herança (nahalah) é legado, possessão ou bem recebido. O profeta Ezequiel assim se
refere à herança da terra: “Reparti-la-eis dando a todos porção igual da terra que jurei solenemente dar aos vossos pais, de modo que ela coubesse a vós como herança” (Ez 47,14). Dado
que a herança provém dos pais ou antepassados, ela adquire caráter sagrado, por isso não pode
ser negociada. Essa é a ótica da resposta do agricultor Nabot diante da proposta comercial
do rei Acab, que queria comprar sua vinha: “Deus me livre de ceder-te a herança dos meus
pais” (1Rs 21,3). Segundo o profeta Isaías, Deus afirma: “Mas aquele que põe sua confiança
em mim herdará a terra” (Is 57,13). E o salmista reza: “Mas os pobres possuirão a terra” (Sl
37,11). A afirmação tem repercussões no Sermão da Montanha, quando Jesus declara: “Felizes os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5,4).
Outra motivação para o direito à terra está na proposta de aliança. Aliança (berît) refere-se ao pacto ou contrato de Deus com o povo, com relação à posse da terra. O último capítulo do livro de Josué se refere justamente à grande assembleia das tribos, concluída com um pacto segundo o qual o povo de Israel se manteria fiel a Javé, ante a concessão da terra de Canaã. “Naquele dia, Josué fez uma aliança pelo povo; fixou-lhe um estatuto e um direto em Siquém” (Js 24,25). Já no monte Sinai, havia sido firmada a aliança com Deus, condicionando a posse da terra às cláusulas do contrato: “Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda
a terra é minha” (Êx 19,5).
Nova motivação reside na certeza da promessa. Deus promete a posse da terra, sob
juramento, por isso, a garantia do seu cumprimento é absoluta. A promessa da terra remonta
ao patriarca Abraão: “À tua posteridade darei esta terra, do Rio do Egito até o Grande Rio, o rio
Eufrates” (Gn 15,18). Diversas tradições bíblicas mantêm a memória desta promessa. Segundo
Deuteronômio, a terra é prometida sob juramento divino (Dt 1,8.35...), é dada (Dt 1,8.35...),
como herança a Israel (Dt 1,8.21...), sendo uma terra boa (Dt 1,25.35...), cuja posse está condicionada ao cumprimento dos mandamentos (Dt 12,1; 17,14...). No Novo Testamento, o Cântico
de Zacarias, conhecido como Benedictus, faz memória “de sua aliança sagrada, e do juramento que
fez ao nosso pai Abraão de nos conceder que... o sirvamos com santidade e justiça” (Lc 1,72-75).
Há ainda a motivação referente à bênção. “Deus os abençoou” com a fertilidade de
todos os seres vivos para que cresçam e se multipliquem (Gn 1,22.28...). A promessa da terra
traduz a bênção divina a Abraão, conforme o augúrio e bênção de Isaac a Jacó: “Que ele te
conceda, bem como à tua descendência, a bênção de Abraão, a fim de que possuas a terra em
que vives e que Deus deu a Abraão” (Gn 28,4). Em retribuição à bênção divina, as pessoas
bendizem a Deus, como cantou Débora, ao comemorar a conquista da terra de Canaã: “Já
que, em Israel, os guerreiros soltaram a cabeleira, e o povo espontaneamente se apresentou,
bendizei ao Senhor” (Jz 5,2).
Mas o motivo que não pode ser minimizado é o da luta e conquista da terra. Deus
prometeu a terra, mas não a concede sem o esforço humano e a estratégia sagaz para conquistá-la. Os livros de Josué e Juízes são a demonstração da tese segundo a qual a terra de Canaã
foi conquistada à força. Ao recapitular as vitórias sobre os reis de Canaã, o autor de Josué
afirma: “Moisés, servo do senhor, e os israelitas derrotaram-nos” (Js 12,6). Tempos depois, o
Salmista canta e alerta: “Desde o seu santuário, Deus é terrível. Ele é o Deus de Israel, que
dá ao povo força e poder” (Sl 68,36). O próprio nome Israel se explica pela luta de Jacó com
Deus. “Não te chamarás mais Jacó, mas Israel, porque foste forte contra Deus e contra os
homens, e tu prevaleceste” (Gn 32,29).
A luta pela reforma agrária, nos dias atuais, não carece de justificativa bíblica.
A leitura dos textos bíblicos, porém, deixa evidente que há muito por fazer nesse sentido, para
nos aproximarmos do ideal querido por Deus.
A TERRA NÃO PODE SER VENDIDA
“A terra não será vendida perpetuamente, pois a terra me pertence e vós sois para
mim estrangeiros e hóspedes. Para toda a propriedade que possuirdes, estabelecereis o direito
de resgate para a terra” (Lv 25,23-24).
O texto de Lv 25,23-34 trata do resgate das terras, das casas e das pessoas. Para o
interesse sobre a terra (Lv 25,23-28), a lei do resgate possui diversas motivações, partindo
de uma proibição absoluta de vendê-la, passando por uma razão teológica de sua pertença a
Deus e propondo um recurso para resgatá-la em caso de perda.
No ano jubilar todas as terras devem retornar aos primitivos donos. “A razão é dogmática: sendo Yhwh o único proprietário (Canaã é a herança de Yhwh), os israelitas não podem ser mais que forasteiros admitidos como inquilinos (Sl 39,13; 1 Cr 29,15)” (IBAÑEZ ARANA, 1974, p. 201).
A mesma razão que assegura a propriedade de Deus sobre a terra motiva a interdição de vendê-la para sempre. A lógica é simples. Se a terra pertence a Deus, nenhum ser humano tem o direito de negociar com ela e obter lucros. Deus concede o usufruto da terra como dom de sua gratuidade, em forma de empréstimo, mediante algumas condições. As pessoas podem usá-la, como se fossem estrangeiras e hóspedes, mas não tomar posse dela definitivamente. Pelo mesmo argumento, caso alguém vier a perder o pedaço de terra que cultivava, por qualquer motivo, terá o direito de resgatá-lo (BRUEGGEMANN, 1986).
Os seres humanos não podem vender a terra, simplesmente porque esta não lhes pertence. Se Deus é o proprietário da terra, em consequência, os seus usuários são apenas posseiros, sendo que a Bíblia os trata como peregrinos, hóspedes ou estrangeiros. É assim que o salmista reza: “Eu sou um estrangeiro na terra, não escondas de mim teus mandamentos” (Sl 119,19). E Davi, ao agradecer a Deus, afirma: “Diante de ti não passamos de estrangeiros e peregrinos como todos os nossos pais” (1Cr 29,15).
Da mesma forma a noção de povo de Deus como peregrinos e forasteiros ou como estrangeiros e viajantes está bem presente no Novo Testamento, sobretudo na primeira carta de Pedro (1Pd 2,11).
Algo similar também se pode encontrar em tradições de outras culturas. Diz um provérbio keniano: “Trate bem a terra. Ela não lhe foi dada pelos pais. Foi-lhe emprestada pelos filhos”.
As primeiras comunidades cristãs perseguem a recuperação deste ideal de manter a propriedade comunitária da terra e dos demais bens para que não houvesse pessoas necessitadas, de acordo com os relatos de Lucas (At 2,44-45; 4,32-37).
A convicção de que a terra é propriedade de Deus e, consequentemente, não pode ser vendida motiva diversas leis relativas à terra em Israel.
A TERRA PERTENCE A DEUS
“A terra não será vendida perpetuamente, pois a terra me pertence e vós sois para mim estrangeiros e hóspedes. Para toda a propriedade que possuirdes, estabelecereis o direito de resgate para a terra” (Lv 25,23-24).
A convicção fundamental que rege todas as relações das pessoas com a terra é que a terra é um bem básico, que não pertence ao ser humano, mas a Deus. Este é o porto de partida para todas as considerações sobre a realidade da terra e da reforma agrária na Bíblia.
Muitos textos bíblicos repetem a certeza de que a terra é propriedade de Deus. Diante do Sinai, ao estabelecer a aliança com o povo, Deus afirma: “Toda a terra é minha” (Êx 19,5). E o Salmista canta: “Do Senhor é a terra e o que nela existe, o mundo e seus habitantes” (Sl 24,1). Para Isaías, o Santo de Israel “se chama o Deus de toda a terra” (Is 54,5).
Mais que proprietário, Deus é o criador da terra. Assim começa a Bíblia, em sua primeira frase: “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). A realidade do Deus criador da terra se espalha por inúmeras páginas da Bíblia. Significa que a terra não pode ser concebida como uma realidade autônoma, mas sempre dependente de quem a concebeu. Como Senhor e criador da terra, Deus a concedeu aos seres humanos como um presente de sua bondade (WAINER, 1996).
Numa dimensão escatológica, ideal, após tantas peripécias dos seres humanos
agredindo a terra, criatura divina, o próprio Deus propõe “criar novos céus e nova terra” (Is
65,17; 66,22), o que tem reflexos no Novo Testamento, praticamente na última página da
Bíblia (Ap 21,1).
Como a terra é criatura de Deus e propriedade sua, ela é santa ou sagrada. Diante
de Jericó, a ser conquistada, o chefe do exército de Javé dá a seguinte ordem a Josué: “Descalça
as sandálias dos teus pés porque o lugar em que pisas é santo” (Js 5,15). O Sinai é declarado
montanha santa (Êx 19,23) e também Judá é chamado terra santa (Zc 2,16; 2 Mc 1,7).
Há, pois, uma relação direta entre terra e religião, terra e fé, como demonstram,
ademais, as profissões de fé em Israel. O chamado credo histórico está no contexto agrícola
da festa das primícias, e proclama sua fé em Deus, porque “nos trouxe a este lugar, dando-nos
esta terra, uma terra onde mana leite e mel” (Dt 26,9).
O que fundamenta toda a relação com a terra é esta convicção básica, que pode ser
assim resumida: a terra é propriedade de Deus, Ele é seu criador, por isso a terra é sagrada. Daí
decorrem as diversas leis e práticas com relação à terra (BRUEGGEMANN, 1986).
O conceito de que a terra é sagrada perpassa outras culturas, como as tradições indígenas, africanas e camponesas em geral. Na realidade de pequenos agricultores do Brasil e
de outros países, vive-se uma relação de respeito à terra, pois é dela que provêm os produtos
que garantem o sustento das pessoas.
No pensamento de Jesus, a preocupação com a terra se torna presente, e se reflete
na súplica pelo pão diário. O pedido para que o Reino de Deus venha, e que sua vontade se
realize na terra como nos céus está expresso na oração do Pai-nosso (Mt 6,10).
O DIREITO DE RESGATE DAS PROPRIEDADES
“A terra não será vendida perpetuamente, pois a terra me pertence e vós sois para mim estrangeiros e hóspedes. Para toda a propriedade que possuirdes, estabelecereis o direito de resgate para a terra” (Lv 25,23-24).
O mesmo texto que afirma a propriedade de Deus sobre a terra e motiva a interdição de vendê-la para sempre prevê uma prática para recuperar a terra, em caso de endividamento. Com isso, a propriedade não é vendida definitivamente, mas por período determinado. Caso o vendedor não possa resgatar a sua posse, essa será devolvida no ano do jubileu. Isso significa que a cada cinquenta anos todas as propriedades voltam para os seus proprietários originais.
A noção de posse provisória já é cantada na prece do Salmista: “Ouve a minha prece, Senhor... Pois sou forasteiro junto a ti, inquilino como todos os meus pais” (Sl 39,13). E o profeta Jeremias recordará o ideal da vida nômade: “Durante toda a vossa vida habitareis em tendas, para que vivais longos dias na terra em que residis” (Jr 35,7). O primo de Jeremias, Hanameel, lhe propõe: “Compra o meu campo de Anatot, no território de Benjamim, porque tu tens o direito à herança e o direito de resgate, compra-o” (Jr 32,8).
A história de Rute ilustra muito bem essa realidade, quando Booz resgata o terreno do falecido esposo de Noemi (Rt 4,1-11) (IBAÑEZ ARANA, 1974).
A noção de resgate passou para o Novo Testamento aplicada normalmente a Jesus, o Filho do Homem, que “não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida como resgate por muitos” (Mt 20,28). Como quem paga o resgate, num mercado de escravos, assim “Cristo nos resgatou da maldição da Lei tornando-se maldição por nós” (Gl 3,13).
A conclusão do assunto se impõe. Ao ler a Bíblia na ótica do direito à terra como
direito à vida, essa realidade salta aos olhos a cada página. Terra é realidade, é presença, e é
símbolo. Existe uma conaturalidade entre ser humano e terra fértil. O ser humano (’adam) é
feito da terra (’adamah) (Gn 2,7), e recebe a missão de cultivar a terra, “até que retornes ao
solo (’adamah), pois dele foste tirado” (Gn 3,19).
Essa relação estreita entre ser humano e terra assegura o bem viver da mulher e do
homem. Mas garante, igualmente, o bem-estar da natureza toda, especialmente dos animais,
que usufruem desse equilíbrio. Tudo isso se realiza em vista da convivência justa e igualitária.
O conceito bíblico de distribuição da terra parece um ideal maravilhoso. Quem
sabe nunca tenha se realizado plenamente, nalgum momento da história. Mas permanece
como um ideal a ser perseguido. Propõe conceitos novos e desafiadores. Por isso, serve de
inspiração para todas as épocas e para todos os lugares, especialmente para os dias atuais.
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