Ciência e literatura como proposta transdisciplinar de conscientização ecológica
A proposta do presente artigo é apresentar alguns pontos relevantes da história
natural das formigas e as possíveis associações que podem ser feitas em um contexto
transdisciplinar de conscientização ecológica. A partir deste grupo de insetos, é possível
fazer generalizações e posteriormente estender conclusões ecológicas para outros grupos
taxonômicos, estabelecendo conceitos fundamentais sobre os serviços ecossistêmicos
desempenhados pelas variadas formas de vida que nos cerca – e que na maioria das vezes
está oculta aos olhos humanos. Mesmo com o excepcional volume de informação disponível
nos dias de hoje, principalmente por causa da revolução de meios de comunicação, a falta
de integrações que esclarecem conceitos e universalidades do conhecimento ainda é um
desafio contemporâneo. Ao me basear em conceitos ecológicos para apresentar a vida social
das formigas, invoco passagens da literatura brasileira como proposta de uma abordagem
integrativa que se manifeste em uma reflexão ecológica sobre nosso papel no gerenciamento
e conservação da biodiversidade brasileira.
Introdução
Há algum tempo circularam pelas redes sociais alguns vídeos que mostravam a
arquitetura de uma enorme colônia de formigas, revelando uma espantosa estrutura composta
de túneis no subsolo de uma floresta2
que deixaria Oscar Niemeyer embasbacado. De
imediato, lembrei-me de um provérbio sobre esses insetos que muitas pessoas pensam ser
insignificantes. Salomão, o famoso rei de Israel, parece ter adquirido alguns ensinamentos
pertinentes para governar seu povo depois de observar esses minúsculos artrópodes quando
aconselha: ―vai ter com a formiga, ó preguiçoso, e considera o seu proceder, e aprende dela a
sabedoria. Não tendo ela guia, nem mestre, nem príncipe, faz o seu provimento no estio, e
ajunta no tempo da ceifa com que se sustentar‖ (Livro dos Provérbios, 6: 6-8).
Quando norteamos abordagens ou discussões de acordo com os preceitos da Ecologia
(ou de qualquer ramo científico derivado dela, como a Biologia da Conservação), temos de
levar em conta toda a gama de interações que ocorre entre os seres vivos. Embora isso não
seja uma tarefa nada fácil, as formigas são um bom exemplo para descortinar a complexidade
de interações ecológicas que ocorrem na natureza; ainda, esse grupo taxonômico representa bem a importância e magnitude dos serviços ecológicos prestados que são invisíveis ou
negligenciados no cotidiano da maioria das pessoas. A estrutura de formigueiros mostrados
em vídeos populares na web, apesar de serem impressionantes, é apenas uma pequena amostra
do poder secreto destes insetos. Há muitos espaços interessantes que abordam sua vida social,
desde entrevistas com especialistas3
, até documentários completos4
conduzidos por
entomólogos (i.e., cientistas que estudam insetos) de referência mundial no estudo desses
incríveis animais, mas por ora, limito-me a invocar uma passagem que nos dá informações
muito relevantes sobre o papel ecológico das formigas, ao mesmo tempo que enfatiza o nosso
viés antropocêntrico de pensar o mundo. O trecho a seguir é do livro autobiográfico
Naturalista (1997, pg. 279) do renomado biólogo Edward O. Wilson, professor e pesquisador
da Universidade de Harvard, EUA:
Manchinhas avermelhadas e escuras que ziguezagueiam pelo chão para se enfiarem buracos,
elas estão em toda parte; com o peso expresso em miligramas, são habitantes de uma
estranha civilização que oculta de nossos olhos sua rotina diária. Por mais de cinquenta
milhões de anos e onde quer que haja terra, com exceção das camadas de gelo das regiões
polares e alpinas, as formigas têm sido insetos esmagadoramente dominantes. Pelos meus
cálculos, há de um a dez quatrilhões de formigas vivas, todas pesando juntas, pela ordem
mais próxima de magnitude, tanto quanto a totalidade dos seres humanos.
Mas uma diferença, uma diferença vital se oculta nessa equivalência. Enquanto as formigas
existem na quantidade mais correta possível em relação ao restante do mundo vivo, os
humanos se tornaram numerosos demais. Se estivéssemos fadados a desaparecer hoje, o
ambiente terrestre retornaria ao fértil equilíbrio que prevalecia antes da explosão
populacional humana. Apenas cerca de uma dezena de espécies (entre as quais os piolhos,
cães e gatos domésticos e um ácaro que vive nas glândulas sebáceas de nossa testa)
dependem de nós. Mas, se as formigas desaparecessem, dezenas de milhares de outras
espécies de plantas e animais pereceriam também, simplificando e enfraquecendo por quase
toda parte os ecossistemas terrestres."
Este épico e retumbante sucesso na colonização e estabelecimento em solos ao redor
do mundo se deve a uma exímia organização social - que chega a espantar pela simplicidade -
que se resume a colaboração e divisão de funções. E quando tomamos consciência deste fato,
é difícil evitar a sensação de que o planeta, em boa parte, pertence às formigas, por mais
desagradável que isso soe aos ouvidos humanos; é chocante perceber que as formigas não são
pragas. A essência da transcrição acima é essa verdade ecológica: se as formigas desaparecessem, centenas de milhares de espécies seriam extintas e muitos ecossistemas
ficariam perigosamente desestabilizados. Essa importância na estruturação dos ecossistemas
terrestres do planeta se dá por regras elementares envolvidas na manutenção da vida, que
essencialmente respeitam princípios básicos da termodinâmica:
(1) o da conservação de
energia, que prova que um sistema não pode criar ou consumir energia, mas apenas armazenála ou transferi-la, e
(2) o da entropia, que é a tendência da energia se dissipar.
As formigas têm um papel fundamental no dinamismo dos ciclos biogeoquímicos que
são responsáveis pelos fluxos de energia e matéria na natureza, uma vez que elas participam
de muitas etapas ecológicas desses processos. Ao lado dos cupins e minhocas, as formigas
arejam, revolvem e drenam diariamente toneladas de terra e assim garantem a boa saúde do
solo, mais tarde enriquecido pela matéria orgânica que os insetos levam para os ninhos. ―Hoje
se sabe que as formigas são mais importantes que as minhocas nesse trabalho‖, diz o
mirmecólogo (i.e., especialista em formigas), Carlos Alberto Brandão, da Universidade de
São Paulo. Edward Wilson, por sua vez, calcula que elas desfazem e enterram nove de cada
dez pequenos animais mortos em qualquer ponto do planeta (DIEGUEZ & PAPAROUNIS,
1993).
A Ecologia é um ramo científico muito recente na história da ciência, o que a faz
emprestar conceitos de várias áreas do conhecimento, sendo portanto uma disciplina
transdisciplinar por excelência. O mais interessante na filosofia científica é justamente o fato
de assumir que cientista algum poderá jamais fazer uma descoberta sem se basear sobre os
elementos deixados por seus antecessores. E tão espantosa quando interessante, é a
constatação que certas ideias são compartilhadas em várias linhas de pesquisa. É atribuído a
Antoine Laurent de Lavoisier (1743 —1794), o químico francês considerado o pai da química
moderna, um aforismo bem conhecido que encerra em si a ideia mais elementar da
termodinâmica e da própria ecologia: ―Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se
transforma.
Os ecossistemas terrestres não fogem à essa regra, afinal eles funcionam como
qualquer sistema termodinâmico estudado por físicos ou químicos que investigam o
comportamento de partículas, átomos ou moléculas. Na ecologia, entretanto, a unidade mais
básica e fundamental para o entendimento de um ecossistema é a espécie, daí a importância
de se conhecer bem a história natural de nossa flora e fauna para entendermos a dinâmica e
funcionamento de comunidades e ecossistemas. Somente assim poderemos nos beneficiar de seus serviços, inclusive para nosso bem-estar e qualidade de vida, sem a agressão desenfreada
e inconsequente da atualidade, e para isso é essencial que continuemos a aprender e encontrar
soluções observando o mundo vivo ao nosso redor – mas nos inserindo no ambiente como
mais um ramo na árvore da vida, e não com o pensamento antropocêntrico de estamos no topo
de alguma escala evolutiva.
A natureza é grande nas coisas grandes, e grandíssimas nas pequeninas: o valor das
pequenas coisas na Ecologia e na Evolução
O sucesso evolutivo das formigas tem muito a ver com a vida em grupo, uma preciosa
combinação envolvendo organização, especialização e cooperação, tudo isso sustentado por
um sistema de comunicação, sobretudo química, desenvolvimento durante sua longa história
evolutiva (WILSON, 2013). A seleção de hábitat, por exemplo, é feita por uma espécie de
consenso. Cada formiga libera marcadores químicos em partes da trilha, informando assim
que tem preferência por aquele trecho. Comunicação, colaboração: quanto mais forte o sinal
químico, mais a trilha é usada. Portanto, elas não têm líder, e sim um consenso da
comunidade, que é estabelecido pela intensidade do ‗aroma químico‘. Outro exemplo de
cooperação é o que os cientistas chamam de ‗estômago social‘: em algumas espécies, castas
especializadas regurgitam o alimento coletado fora do formigueiro para os indivíduos que
ficaram trabalhando na manutenção interna da colônia. Cada vez mais, as pesquisas com esses
insetos mostram a grandiosidade da ação em conjunto, que equivale a um superorganismo.
Para se ter uma ideia da magnitude do impacto ecológico desses insetos, basta dizer que o
consumo de biomassa pelas formigas dos pampas argentinos afeta o consumo de capins por
parte do gado criado na região.
Se a sociedade humana ainda tem muito o que aprender com as das formigas, somos
dignos de dó quando nos compararmos individualmente com esses guerreiros em miniatura.
Além de já nascerem com uma estrutura corporal (exoesqueleto) que mais parece uma
armadura de samurai, experimentos mostram que a taxa metabólica das formigas é bem
superior à nossa – e.g., ao cortar uma folha com suas mandíbulas, a taxa metabólica de uma
formiga é três vezes maior do que a de um atleta no máximo de sua performance. Sem contar
a carga transportada em proporção ao peso corporal ou às distâncias percorridas. Nesse
sentido, uma saúva carregando apressadamente um pedaço de folha equivaleria a um ser humano carregando um fardo bem pesado, por dezenas de quilômetros, sem parar, a uma
velocidade que nunca atingiríamos a pé.
Oliveira (1990) faz um levantamento de curiosidades interessantes relacionadas a
refinada organização social das formigas, e como elas não cessam de maravilhas os
pesquisadores. Para o nosso contexto, vale ressaltar que se todos os animais terrestres fossem
colocados numa balança, 1/10 do peso (cerca de 900.000 toneladas) seria representado por
formigas, esse inseto com menos de um milionésimo da massa de um ser humano. Isso
significa que a população de formigas é maior que a de todas as aves, répteis e anfíbios
juntos, sendo estimada em torno de 10 quintilhões de indivíduos (o número 1 seguido de
dezenove zeros). "Mas não é pelo peso ou pelo número que as formigas devem ser
distinguidas", lembra o entomolólogo americano E. O. Wilson, da Universidade Harvard. "O
desaparecimento desses insetos poderia levar à extinção milhares de espécies,
desestabilizando a maioria dos ecossistemas." Wilson e seu colega Bert Hölldobler
publicaram em 1994, nos Estados Unidos, o livro Ants (Formigas), logo aclamado como um
clássico, onde analisam o comportamento de seus animais preferidos e aponta várias
peculiaridades de sua organização social.
Outro papel ecológico desempenhado pelas formigas que é de suma importância é a
disseminação de sementes de plantas e a função de ‗faxineiras‘, já que comem até 90% dos
cadáveres de pequenos animais. Todos esses trabalhos são levados muito a sério. Para
começar, nada de sexo - atividade exclusiva das rainhas. As trabalhadoras devem se limitar a
fazer a parte que lhes toca para conservar o lar comunitário e garantir a propagação dos genes
de sua parenta privilegiada. Assim, para realizar suas funções com plena eficiência, cada uma
se especializa ao máximo, mudando a própria anatomia. Os soldados são fêmeas que trocaram
os órgãos reprodutores por um abdômen cheio de armas biológicas. O gênero asiático
Camponotus, por exemplo, é uma verdadeira bomba, que rompe o próprio corpo para lançar
veneno sobre os adversários. As lava-pés, como são conhecidas as Solenopsis invicta nativas
do sul do Brasil, tem um veneno forte que causa sensação de queimadura. Elas associam-se
em colônias protegidas por um contingente de até 100.000 soldados. Longe de casa, são
capazes de unir-se rapidamente para o combate por meio de ordens químicas. As formigas,
por sinal, dominam uma linguagem química complexa. Uma colônia comum pode farejar no
ar 1 trilionésimo de grama de uma dúzia de sinais de cheiros diferentes, de acordo com os
feromônios secretados no solo por várias glândulas. É desse modo que uma operária indica a
outra companheira o caminho até um inseto morto. Mas o talento das formigas como químicas tem seu melhor exemplo na Oecophylla, a formiga-tecelã que vive em árvores.
Presentes em abundância nas florestas da África e no sudoeste da Ásia, elas se utilizam da
seda produzida pelas larvas para ligar folhas e galhos, formando grandes e seguros pavilhões
aéreos, que funcionam como as teias das aranhas (OLIVEIRA, 1990).
Atualmente é bem sabido pela ciência que o CO2 é o principal gás emitido por meio de
atividades humanas, de acordo com a Revisão de Gases Estufa da Agência de Proteção
Ambiental dos Estados Unidos. E o volume liberado só aumentou desde a revolução
industrial, contribuindo para o aquecimento global. O que foi novidade para a comunidade
científica muito recentemente é que as formigas também podem ajudar a capturar CO2 e
auxiliar na luta contra o aquecimento global. Schults (2014) explica os detalhes mais
relevantes de estudo publicado recentemente no periódico Geology, onde os pesquisadores
associaram as formigas à aceleração do armazenamento de dióxido de carbono natural em
rochas. Respondendo ao estudo, David Schwartzman, professor emérito de biogeoquímica da
Howard University que revisou a pesquisa, declarou que as formigas podem ter um papel
importante parar o sequestro de carbono da atmosfera, embora as pesquisas nessa área ainda
estão apenas em seus primeiros passos.
Por outro lado, o papel das formigas na cadeia alimentar já é bem conhecido pelos
ecólogos. Muitas aves, lagartos, sapos, alguns besouros e também o homem incluem esses
insetos em suas dietas. "Os índios tupis já preparavam há centenas de anos as ycobas (içás),
palavra que significa gordura, devido ao abdômen cheio de ovos", informa o zoólogo Nélson
Papavero, no livro Insetos no folclore. "Eram torradas como amendoim, moqueadas e servidas
com molho de tucupi bem apimentado ou então assadas em paçoca com farinha de
mandioca", descreve Papavero. Alguns grupos indígenas usam também as gigantes saúvassoldados como grampos para ligar as bordas de cortes na pele. A aplicação é simples:
colocam as formigas para morder a ferida e arrancam seus corpos, ficando a cabeça presa ao
ferimento para auxiliar a cicatrização (OLIVEIRA, 1990).
A organização e eficiência da vida em sociedade: as saúvas como personagens da
história do Brasil
Qualquer pessoa que tenha observado as paisagens em torno das estradas ou reparado
em algum pasto em sua cidade já avistou grandes formigueiros ou cupinzeiros, uma vez que
ao edificar suas moradas estes insetos acumulam montes de terra na superfície, chegando a alturas consideráveis. Oliveira (1990) ressalta que essas construções de terra são endurecidas
como um verdadeiro telhado de barro, que acabam abrigando alguns atraindo outros, como
tatus e tamanduás, cujo prato predileto (e invariável o ano inteiro) são precisamente formigas
saúvas. Outros bichos preferem esperar a época da primavera, quando as formigas aladas
encarregadas da reprodução (no caso das saúvas, elas conhecidas como içás ou tanajuras, no
caso das fêmeas, e bitus, os machos) começam a revoada de acasalamento. O autor também
discute os benefícios e prejuízos que as formigas podem causam aos seres humanos, pois com
a mesma eficiência que elas revolvem a terra e contribuem para a fertilidade do solo, elas
também pode destruir lavouras inteiras ou mesmo competir com o gado por gramíneas.
Essa voracidade das saúvas fez com que elas adquirissem má fama, pois são uma das
forças mais dominantes do planeta, e em alguns casos, tão inteligentes quanto suas primas, as
abelhas. Dieguez. & Paparounis (1993) destacam que os entomólogos defendem que as
formigas possuem uma espécie de inteligência que não funciona no cérebro, mas sim
embutida nas habilidades desenvolvidas em conjunto por esses pequenos seres. Acima de
tudo, sua sagacidade transparece por meio da vida em sociedade: entre milhões de espécies
classificadas na categoria dos insetos, apenas as formigas e os cupins desenvolveram ao
máximo esse método de dividir tarefas e multiplicar a eficiência do trabalho. Em suas
comunidades, todas as fêmeas operárias são estéreis e os machos servem apenas para
inseminar a rainha, única fêmea fértil. Chamam-se ―eussociais‖ os seres que praticam tal
forma de matriarcado, que foi decisiva: somente 5% de todas as espécies de abelhas, por
exemplo, têm comportamento social, mas estas últimas superam largamente em número os
95% restantes.
Não é à toa, portanto, que costuma-se dizer que colmeias e formigueiros não são
simples ninhos, e sim uma espécie de ‗superorganismo‘. As bem conhecidas colmeias
abrigam em média 50.000 moradores, mas os sauveiros são ainda mais complicados, e podem
reunir mais de 5 milhões de habitantes. Em cada um deles, túneis estreitos interligam dezenas
de câmaras — os locais onde as saúvas efetivamente vivem. São ocos subterrâneos,
geralmente com meio metro de altura, usados para diversas funções: desde lixeiras
comunitárias (também usadas como cemitérios), até berçários onde a rainha deposita ovos. No
final, a construção equivale a um prédio de três andares enterrado a 10 metros de
profundidade. Aí, o maior compartimento é o de cultivo, onde folhas que chegam do exterior
são dispostas com cuidado e adubadas com o hormônio fertilizante, excretado pela rainha, o
ácido indolil-acético. Uma casta inteira de saúvas, as chamadas jardineiras, com cerca de 2 milímetros de comprimento, nunca sai do formigueiro. Elas existem para cuidar do fungo, o
que inclui cortar ‗ervas daninhas‘, ou seja, os fungos que não servem para comer. As
cortadeiras, que trazem as folhas, têm 5 milímetros e labutam no mundo externo sob a
proteção dos taludos soldados, com 1,5 centímetro. Estima-se que um sauveiro maduro chega
a cortar cerca de 8 toneladas de folhas por ano — o suficiente para alimentar três bois.
(DIEGUEZ. & PAPAROUNIS, 1993).
Sem dúvida, foi justamente essa eficiência que sustentou o visceral preconceito contra
a saúva, sendo possível identifica-las até em passagem literárias, o que reflete que as saúvas
estão relacionadas com a própria história do Brasil. Já em 1560, o padre José de Anchieta
afirmava desdenhosamente que, entre as formigas do país, só mereciam menção ―as chamadas
içás, que estragam as árvores‖. O personagem Macunaíma, da obra homônima, de 1928, do
escritor modernista brasileiro Mário de Andrade, também faz menção a essas formigas em
particular quando atesta que ―pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são". Esse verso
parece inspirado num vaticínio famoso, escrito 100 anos antes pelo naturalista francês
Auguste Saint-Hilaire: ―Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil‖. No
entanto, o erro básico desse modo de ver as formigas como inimigas é tirar da trama o
principal vilão da história: o próprio homem. Hoje sabemos, por exemplo, que uma das causas
da proliferação de saúvas que acabou por provocar prejuízos catastróficos na economia
brasileira no século passado se deve as drásticas reduções populacionais de tamanduás e
outros vertebrados que incluem as saúvas em sua dieta, uma vez que sofreram com a
fragmentação de hábitat provocado pelo avanço agrícola da época para cultivo das plantações
de café, uma das principais engrenagens econômicas do país naquela época.
É fácil perceber, à luz da ecologia, que a saúva causa grandes estragos onde o homem
gerou fortes desequilíbrios ecológicos. Os pastos são um exemplo histórico: em alguns deles
se podem contar até mais de 50 sauveiros em cada quadrado de apenas 100 metros de lado.
Um caso notório dessa prática ocorreu em Mato Grosso do Sul, que se diz ostentar a maior
concentração de formigueiros do mundo: reunidos num só, eles cobririam 500 quilômetros
quadrados, área quase igual à da cidade de Porto Alegre. O desastre foi detectado no centro do
Estado, onde a mata de 2.500 quilômetros quadrados havia sido derrubada para dar lugar
monocultura de eucaliptos. A conclusão inevitável dos biólogos é que a ‗praga‘ saúva segue
os desajeitados passos humanos na natureza. E não só a saúva: a doméstica lava-pés, por
exemplo, tem sido acusada de devorar até crianças no Estado americano do Texas, para onde foi levada provavelmente em cargas de navios (OLIVEIRA, 1990; DIEGUEZ &
PAPAROUNIS, 1993).
No caso das saúvas brasileiras, apesar de preferirem fazer o corte de folhas à noite
para evitar os predadores, é possível vê-las trabalhando durante o dia caso pressintam, por
mecanismos ainda desconhecidos, a chegada de chuvas no entardecer. Oliveira (1990) destaca
que durante as tempestades, estas incansáveis formigas finalmente param de trabalhar para se
proteger no interior dos ninhos que, embora feitos de terra, não ficam completamente
inundados. As câmaras internas, ou panelas, como se denominam os grandes salões no
interior do sauveiro, são dispostas lateralmente aos túneis de forma a evitar que sejam
destruídos pelas grandes chuvas. Como nos diversos ambientes de uma residência humana,
em cada câmara pratica-se um tipo de atividade diferente. No que se poderia chamar de
cozinha, ou horta comunitária, cultiva-se um fungo para a alimentação de toda a colônia; nos
quartos funcionam um tipo de berçário para os ovos das saúvas, também criados em meio ao
fungo, e em outras dependências funcionam o ‗lixão‘ e o cemitério, onde são depositadas as
formigas mortas da colônia. O fungo que serve de alimento às formigas, o Pholota
gongylophora, por sinal, só pode ser encontrado em câmaras específicas. Ali, operárias
jardineiras, medindo de 2 a 3 milímetros, picam em partes cada vez menores os pedaços de
folhas que chegam, as quais são implantadas nas esponjas de fungos, que as utilizam como
alimento. Além disso, as jardineiras retiram constantemente pedaços mortos do fungo, assim
como folhas secas, e mantêm as condições climáticas ideais para o desenvolvimento do
fungo, já que longe desses cuidados, o Pholiota raramente sobrevive. Mas todo esse esforço
despendido pelas formigas é compensado, uma vez que tal fungo lhes fornece a capacidade de
digerir a celulose e outras substâncias tóxicas dos vegetais.
Numa coisa, portanto, o herói de Mário de Andrade estava certo: as diversas espécies
do gênero Atta são o maior grupo de formigas do Brasil. O padre Anchieta e Saint-Hilaire
também anunciam bem o poder de um dos exércitos mais poderosos do mundo que, embora
compostos por minúsculos invertebrados, são capazes de arquitetar câmaras, galerias e túneis
faraônicos e muito bem organizados para o funcionamento pleno do formigueiro. Mais uma
vez, devido a constante combinação que esses insetos sociais desenvolvem com maestria:
organização, especialização e cooperação.
Fluxo de energia e o conceito de capacidade de suporte: o que é ser ‘ecologicamente
correto’? Uma lição a ser aprendida pelos humanos
Em última instância, toda e qualquer espécie tem o crescimento de suas populações
limitado pela disponibilidade de recursos no seu ambiente. Foi dessa fonte que bebeu o
próprio Charles Darwin (1809-1882) durante a gestação de sua teoria evolutiva, pois foi após
ler o livro ―Ensaio sobre princípios populacionais‖, do economista Thomas Malthus (1766-
1834), é que o jovem naturalista inglês foi capaz de conceber o raciocínio de seleção natural –
o mecanismo que favorece os organismos mais bem adaptados para competir por recursos do
ambiente. Se somos mais uma espécie animal, nós não temos como fugir dessa regra;
pesquisas comportamentais com colônias de formigas podem oferecer informações preciosas
sobre o fluxo de energia e capacidade de suporte, algumas das quais podem ser aplicadas ao
Homo sapiens.
Em um estudo hoje considerado clássico, Lugo e colaboradores (1973) investigaram as
saúvas (Atta colombica) que vivem nas florestas tropicais úmidas da Costa Rica, onde
coletam fragmentos de folhas novas na vegetação, levando-os aos formigueiros subterrâneos a
fim de servirem de substrato para culturas de fungos, dos quais elas se alimentam. Os
pesquisadores estimaram os gastos de energia das diferentes atividades dentro de uma colônia
e concluíram que a capacidade de suporte (i.e., o tamanho máximo da colônia) é atingida
quando a entrada de calorias, na forma de folhas coletadas, equilibra o custo energético do
trabalho envolvido no corte e transporte das folhas, na manutenção das trilhas e no cultivo dos
fungos. Os pesquisadores observaram ainda que, em um dado momento, nas colônias grandes,
25% das formigas estavam carregando folhas, enquanto 75% estavam cuidando das trilhas e
dos jardins de fungos. Quando a entrada de energia era equilibrada pelos custos de
manutenção, a colônia parava de crescer.
Graças a estudos como esses, sabemos hoje que as colônias de formigas dependem de
subsídios enormes importados de fora, tirados, muitas vezes, de fontes que se acumularam
muito antes do aparecimento do ser humano. É consenso entre os pesquisadores que as
populações humanas parecem se aproximar dos níveis máximos da capacidade de suporte dos
seus respectivos ambientes. Apesar de atualmente a taxa de crescimento da população humana
ser declinante, parar de crescer não impedirá que o consumo global deixe de aumentar. A
chave do problema é baixar a taxa de consumo per capita, já que os recursos limitantes que mais causam preocupação atualmente são alimento, hábitat e combustíveis fósseis (ODUM &
BARRET, 2007).
A explosão demográfica humana das últimas décadas foi promovida pelo aumento da
quantidade de alimento disponível e, mais recentemente, pelas melhorias no saneamento
básico. O primeiro fator elevou a taxa de natalidade, enquanto o segundo reduziu a de
mortalidade. Um exemplo familiar é o hino da copa do mundo de futebol de 1970, que dizia
―noventa milhões em ação, pra frente Brasil do meu coração…‖. E fomos! Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Brasil comportava mais de 190 milhões de
habitantes em 2010. Em 40 anos, portanto, mais do que dobramos a nossa população. Uma
consequência lógica disso foi o aumento na demanda por bens e serviços, o que implicou em
derrubarmos (mais) florestas, construirmos (mais) barragens – o que resultou em alagarmos
(mais) terrenos – e, por fim, produzirmos (mais) lixo e contaminantes. No fim das contas, a
demanda por mais espaço tende a fazer com que outras espécies percam seus hábitats, seja
para a construção de casas, ruas, rodovias, pastos ou plantações.
Como levantado anteriormente, não fomos os inventores da agricultura e da pecuária,
e sim as formigas. Apenas dois gêneros de todo o reino animal foram espertos o bastante para
fugir às incertezas da vida e garantir a sobrevivência por meio daquilo que semeiam e colhem.
O homem é definitivamente um novato: existe há pouco mais de 2 milhões de anos, aprendeu
a arte do cultivo há coisa de 100 séculos e hoje é representado por uma única espécie sobre a
face do planeta, o Homo sapiens. Embora o processo de domesticação foi, sem dúvida, um
dos eventos mais importantes da história humana, ela é muito recente em nossa história
evolutiva. A nossa agricultura, segundo os arqueólogos, parece ter surgido e se espalhado em
diferentes regiões do mundo, em algum momento entre 10.000 e 5.000 anos atrás. A transição
de uma vida como coletores-caçadores para uma vida como cultivadores de alimento fez com
que a nossa civilização se tornasse sedentária e prosperasse, o que na literatura técnica passou
a ser chamado de ‗a revolução do Neolítico‘ (WEISDORF, 2005). Por outro lado, as formigas
veem fazendo esses cultivos de outros seres vivos há milhões de anos.
Os pulgões, que são parentes próximos das cigarras e dos percevejos, têm uma relação
mutualística histórica com as formigas que antecede qualquer hominídeo que já tenha passado
pela face da Terra. Os pulgões se alimentam de seiva das plantas, um material rico em
açúcares, e o que não é digerido é avidamente consumido por certas formigas. Estas, por sua
vez, cuidam do ‗rebanho de pulgões‘ ao afugentar predadores (GULLAN & CRANSTON, 2013). Além da domesticação de animais, algumas formigas são ótimas agricultoras, já que
cultivam fungos no interior de seus formigueiros. Cada pedaço de folha que chega a uma
colônia é tratado com um defensivo natural produzido pelas próprias formigas, para evitar que
microrganismos proliferem e contaminem o jardim de fungos. A eficiência desse processo é
muito superior ao que acontece quando aplicamos pesticidas para combater as pragas de
nossas lavouras.
Nossas formidáveis concorrentes, que existem há um tempo que se mede na casa dos
100 milhões de anos, trazem do berço as técnicas agrícolas e são representadas por dezenas de
espécies sobre a Terra. São as saúvas que aprenderam a cultivar um fungo sobre um canteiro
de folhas cortadas, para depois usá-lo como alimento. Por isso, muitos entomólogos,
estudiosos de insetos, as consideram os mais avançados animais dessa categoria — talvez
mais que as abelhas, suas primas. Não é à toa que saúvas e abelhas têm tanta importância no
mundo moderno. Ambas são descendentes de um inseto sagaz que há mais de 200 milhões de
anos descobriu um meio de colonizar o subsolo, que era, então, um vasto e inexplorado
ambiente, apenas à espera de um aventureiro que o ocupasse (DIEGUEZ & PAPAROUNIS,
1993). Manter uma dieta bem versátil também ajuda: "elas podem explorar diferentes recursos
de um ambiente sem limitação por especialização alimentar", diz o biólogo Rodrigo Feitosa,
da USP. Isso significa que as formigas não são superespecialistas em sua dieta; se uma fonte
de alimento acaba, elas se organizam para procurar outra sem deixar o formigueiro
desprotegido (COHEN, 2013).
Em organismos eussociais, como formigas, são as características da colônia que são
transmitidas às futuras gerações. Ou seja, o conceito de evolução se aplica ao coletivo, não ao
indivíduo. As formigas que não se reproduzem, como as operárias, têm mais tempo para se
especializar em outras tarefas, como a busca de alimento e a defesa do ninho. Cohen (2013)
afirma que para os biólogos essa capacidade de evoluir em grupo é um dos fatores que
garantiram a sobrevivência das formigas por mais de 100 milhões de anos, lembrando que as
formigas têm relações simbióticas (com vantagens para todos) com mais de 400 espécies de
plantas, milhares de artrópodes, fungos e micro-organismos.
Formigas e literatura: como pôr em prática abordagens conservacionistas e
transdisciplinares? Um exemplo com Guimarães Rosa e os sistemas ecológicos do
Cerrado
Mesmo com o excepcional volume de informações disponíveis nos dias atuais,
principalmente por causa das facilidades trazidas pela revolução dos meios de comunicação, a
falta de integrações que esclareçam conceitos e universalidades do conhecimento ainda é um
desafio. É urgente e crescente a necessidade de se promover uma alfabetização ambiental
científica e séria da população, mas essa abordagem de níveis múltiplos e escala ampla
envolve sistemas inteiros de educação e inovação. Essa proposta de abordagem integrativa,
que se preocupa em desvendar explicações de causa e efeito por meio de um entendimento
transdisciplinar, tem sido chamada na literatura científica de consiliência (WILSON, 1999),
de ciência da sustentabilidade (KATES et al., 2001) e de ciência integrativa (BARRET,
2001).
De fato, o desenvolvimento continuado da Ecologia parece estar cada vez mais se
estabelecendo como ciência integrativa, tão necessária aos dias de hoje. No entanto,
estratégias transdisciplinares ainda são muito pouco exploradas no dia-a-dia das escolas
brasileiras, mesmo já sendo bem sabido que para se divulgar ciência de maneira clara e
efetiva, o público deve se sentir inserido no processo histórico, reencontrando-se nos outros e
identificando-se com eles. Somente esta conscientização é capaz de fazer com que o
conhecimento seja uma construção social que possa fazer o estudante transitar da inércia para
a autonomia, com participação ativa no meio em que vive, e não um mero produto final
resultante do acúmulo de dados e informações (FREIRE, 1987; TORRES, 1997).
O escritor Guimarães Rosa, cuja biografia mostra que ele viajou com tropeiros antes
de compor suas obras, é citado aqui como exemplo por estar inserir as realidades locais do
Brasil, fornecendo uma caracterização detalhada do sertanejo (seus costumes, vocabulário,
crenças), e também eternizando ambientes naturais pela descrição dos cenários de suas
histórias de modo bastante convincente. Em grande parte de seus livros ou contos, o escritor
mineiro compõe paisagens e dinâmicas do Cerrado de uma maneira tão acurada que talvez
apenas biólogos muito experientes soubessem descrever. Um professor não teria grandes
dificuldades em explorar os conceitos ecológicos e os aspectos comportamentais da flora e da
fauna desse bioma, implícitos nos trechos a seguir:
Do povinho mais miúdo, por enquanto, apenas o eterno cortejo das saúvas, que vão sob as
folhas secas, levando bandeiras de pedacinhos de folhas verdes, e já resolveram todos os
problemas do trânsito. Ligeira, escoteira, zanza também, de vez em quando, uma dessas
formigas pretas caçadoras amarimbondadas, que dão ferroadas de doer três gritos. Mas aqui
está outra, pior do que a preta corredora: esta formiga-onça rajada, que vem subindo pela
minha polaina. Está com fome. Quer das provisões. Desço-a e ponho-lhe diante de um
grumo de geleia e alguns grãos de farinha. Não quis. Fugiu. Quem vai comer do meu farnel é
todo o clã das quem-quem, esses trenzinhos serelepes, que têm ali perto a boca do seu
formigueiro. Uma por uma, se entrevem; largam os glóbulos de terra, trocam sinais de
antenas, circulam adoidadas e voltam para a cratera vermelha. Vou espalhar no chão mais
comida, pois elas são sempre simpáticas: ora um menino que brinca, ora uma velhinha a
rezar.
Como será o deus das formigas? Suponho-o terrível. Terrível como os que o louvam... E isto
é também como o louva-a-deus, que, acolá, ereto, faz vergar a folha do junquilho. Ele está
sempre rezando, rezando de mãos postas, com punhais cruzados. Mas, no domingo passado,
este mesmo, ou um qualquer louva-a-deus outro, comeu o companheiro em oito minutos,
medidos no relógio – deixou de lado apenas as rijas pernas-de-pau serrilhadas da vítima, e o
seu respectivo colete....Foi-se. (...). Então fiquei meio deitado, de lado. Passou ainda uma
borboleta de páginas ilustradas, oscilando no voo pulandinho e entrecortado das borboletas;
mas se sumiu, logo, na orla das tarumãs. Então, eu só podia ver o chão, os tufos de grama e o
sem-sol dos galhos. Mas a brisa arageava, movendo mesmo aqui em baixo as carapinhas dos
capins e as mãos de sombra. E o mulungu rei derribava flores suas na relva, como se atiram
fichas ao feltro numa mesa de jogo. Paz.
- trecho do conto São Marcos, na obra Sagarana (ROSA, 2001, pg. 282)
E ele achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas nos
caminhos do sertão. (...) Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do
poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo
alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu,
vermelho, um tié-piranga, ainda mais vermelho – e o tié-piranga pousou num ramo de
barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava, porque
tinha agora um ramo que era de mulungu.
- trecho do conto A hora e a vez de Augusto Matraga, na obra Sagarana (ROSA, 2001, pg.
401-402)
O chapadão é sozinho – a largueza. O sol. O céu de não se querer ver. O verde carteado do
grameal. As duas areias. As arvorezinhas ruim-inhas. A diversos que passavam abandoados
de arraras – araral – conversantes. Aviavam vir os periquitos, com o canto-clim. Ali chovia?
Chove – e não encharca poça, não rola enxurrada, não produz lama: a chuva inteira se sorve
em minuto terra a fundo, feito um azeitezinho entrador. O chão endurecia, cedo, esse
rareamento de águas. O fevereiro feito. Chapadão, chapadão, chapadão. De dia, é um horror de quente, mas pra noitinha refresca, e de madrugada se escorropicha de frio, o senhor isto
sabe.
- trecho do romance Grande Sertão: Veredas (ROSA, 2001, p. 339-40).
Destrinchar os processos ecológicos, evolutivos e biogeográficos subjacentes nestas
curtas passagens pode, concomitantemente, despertar o interesse de alunos que tenham
inclinação para as Letras. O modo peculiar de escrever de Guimarães Rosa pode estimulá-los
a se iniciar e/ou se aventurar, também, no mundo da literatura. É, pois, sob essa abordagem
que o conhecimento científico também pode ser trabalhado: integrando-o a outros campos do
saber. A ideia é justamente descortinar para os educandos a conectividade que existe entre as
universalidades do conhecimento, sejam elas artísticas, culturais, históricas, sociais, religiosas
ou científicas.
O homem como gerenciador de biodiversidade: reflexões para o Brasil
O Brasil é conhecido por sua extraordinária diversidade de espécies de formigas e há
muitas décadas nossos cientistas estão dedicados a estudar vários aspectos do grupo, desde
sistemática, história natural, comportamento, ecologia, interações com plantas, até fatores que
influenciam o número e a composição de espécies de comunidades de formigas nos diferentes
ecossistemas brasileiros. Este grupo taxonômico, portanto, é um exemplo para se demonstrar
toda a complexidade das interações ecológicas que ocorrem na natureza.
Em geral, as pessoas costumavam manter uma relação de grande intimidade com os
locais em que viviam. Nossos antepassados eram caçadores-coletores, pequenos lavradores ou
pastores, pessoas que tinham de saber com exatidão todos os detalhes físicos da região de
onde tiravam o sustento, caso quisessem manter intacto seu modo de vida. A maioria de nós,
que vive no mundo moderno, nada tem de comparável a isso, exceto conhecimento prático e
infraestrutura de nossa própria civilização extremamente técnica. No entanto, ver e apreciar,
participar o tempo todo e desde sempre de padrões que não foram estabelecidos por nós.
Lopes (2007), destaca que algum dia alguém ainda irá explicar as raízes da solidão humana
moderna por essa perda de intimidade com o meio ambiente, pelas nossas incontáveis
transgressões em relação ao planeta físico. O autor enfatiza que já não temos mais nenhum
relacionamento com a Terra, e mesmo quando ele existe, quase sempre é rápido demais,
insuficiente para que as coisas sejam absorvidas. Nessa linha de raciocínio, as formigas
demostram ser um bom grupo taxonômico para se ter uma ideia da complexidade e
importância das relações ecológicas que ocorrem no meio ambiente que o homem compartilha
com outros milhares de seres vivos.
Wilson (2008) afirma que nossa relação com a natureza é primal e discute que as
emoções que ela desperta devem ter surgido durante a esquecida pré-história da humanidade
e, portanto, são profundas e obscuras. A atração gravitacional da natureza sobre a psique
humana pode ser expressa em um único termo, mais contemporâneo: biofilia, definido como a
tendência inata para se afiliar à vida e aos processos vitais. O pesquisador ressalta que, desde
a infância até a velhice, as pessoas de todas as partes do mundo sentem atração pelas outras
espécies, mostrando que a apreciação da diversidade da vida é universal e intrínseca ao ser
humano. Explorar a vida e filiar-se a ela, transformar criaturas vivas em metáforas carregadas
de emoção, inseri-las na mitologia e na religião – eis os processos fundamentais, facilmente
reconhecíveis, da evolução cultural biofílica. Essa filiação tem uma consequência moral:
quanto mais compreendemos outras formas de vida, mais o nosso aprendizado se expande,
abrangendo a sua vasta diversidade, e maior é o valor que atribuímos a elas – e,
evidentemente, a nós mesmos. Wilson (2008, p. 78-79) discute como essa filiação influencia
as nossas preferências por certos habitats:
―...os pesquisadores já descobriram que quando pessoas de diversas culturas, incluindo as da
América do Norte, da Europa, da Ásia e da África, têm liberdade de escolher seu local de
residência e trabalho, elas preferem um ambiente que combine três características. Desejam
morar em um lugar alto, com vista para fora e para baixo; de onde se possa ver uma área
verde, com árvores esparsas e pequenos bosques, mais semelhante a uma savana do que a um
campo relvado ou a uma floresta densa; e que esteja perto de uma fonte de água, tal como
um lago, um rio ou o mar. Mesmo que todos esses elementos sejam puramente estéticos e
não funcionais, como acontece nas residências de veraneio, aqueles que dispõem de meios
para tanto estão dispostos a pagar preços elevados para obtê-los. Em testes com várias
opções, verificou-se que as pessoas preferem que sua moradia seja um retiro, com uma
parede, rochedo ou alguma outra coisa sólida na parte de trás. Elas desejam ver um terreno
frutífero em frente ao seu retiro. Apreciam que animais grandes, silvestres ou domésticos,
estejam espalhados pelo local.
(...) Embasada em consideráveis evidências do registro fóssil, essa interpretação sustenta que
os seres humanos de hoje continuam escolhendo habitats semelhantes àqueles em que a
nossa espécie evoluiu, na África, durante milhões de anos de pré-história. Nossos distantes
antepassados desejavam ficar ocultos em pequenos bosques com vista para uma savana ou
em áreas de presas para perseguir, animais abatidos para recolher e deles alimentar-se,
plantas comestíveis para coletar, inimigos para evitar. Um curso d‘água nas proximidades
fazia as vezes de limite territorial e fonte de alimentos.
Será tão estranho que pelo menos um resíduo dessa escolha de hábitat persista entre os
instintos humanos? A busca programada pelo ambiente correto é um comportamento
universal das espécies animais, pela melhor das razões – trata-se de um imperativo para a
sobrevivência e a reprodução.
Embora essas várias linhas de evidências sejam apenas fragmentárias, elas nos dizem que
grande parte da natureza humana foi programada geneticamente durante os longos períodos
em que nossa espécie viveu em contato íntimo com o resto do mundo natural vivo. Hoje as pessoas da maioria dos países não dão mais importância a essa conexão. Elas expulsaram a
natureza viva para as margens da existência, e o declínio desta tem uma prioridade
baixíssima na ordem das suas preocupações. Com o aumento dos conhecimentos científicos
sobre a natureza humana e a natureza viva, essas duas forças criativas da auto-imagem
humana irão unir-se. A ética central vai mudar, e fecharemos o círculo, passando a apreciar e
valorizar todas as formas de vida – e não apenas a nossa.
Os biomas brasileiros, assim como os do resto do planeta, mudaram muito ao longo
dos últimos milhões, milhares e centenas de anos. A extinção ou florescimento de linhagens,
fatos naturais da dinâmica ecológica da vida, tem dependido sempre do fato das espécies
estarem ou não adaptadas a viver em novos cenários – a ideia essencial da boa e velha
evolução por seleção natural, proposta por Charles Darwin em meados do século XIX e que
continua atual. Hoje em dia, depois do crescimento e expansão da população humana, resta
pouco de todo o patrimônio biológico que tínhamos há alguns séculos, já que os fragmentos
de vegetação natural perdem cada vez mais espaço para atividades antrópicas. A
racionalização e aumento no volume de informações fizeram com que nos tornássemos o
último tipo dominante de vida do planeta, fechando a porta à possibilidade de qualquer outro
animal fizesse o mesmo avanço e viesse, quem sabe, a desafiar nossa posição privilegiada na
Terra.
À medida que estendemos as explicações cientificas dentro dos domínios da biologia,
nós ganhamos confiança – ou ficamos aterrorizados – pela conscientização de que nosso
destino como espécie depende do nosso próprio discernimento e também do bom
funcionamento de inúmeros ecossistemas, e não dos caprichos de alguma entidade
sobrenatural (WILSON, 1997). À medida que pensamos com humildade sobre o nosso lugar
na história da vida e à medida que refletimos sobre a nossa origem biológica, começamos a
perceber que os nossos antepassados ultrapassam os limites familiares ou humanos.
Compartilhamos ancestrais em comum com toda e qualquer outra forma de vida, extinta ou
vivente. Afinal, biologicamente falando, somos apenas mais uma entre milhões de
ramificações na árvore da vida.
Nós, brasileiros, somos detentores da fauna e da flora mais ricas de toda a América do
Sul e uma das mais majestosas biodiversidades de todo o mundo. Mas como estamos agindo
em relação a isso? A divulgação de informações equivocadas ou incompletas ainda encontra
solo fértil em nossa sociedade, que continua a ser iludida por ideias e estereótipos que visam,
na maioria das vezes, unicamente estimular o consumo. Nunca fomos tão livres social e politicamente; ao mesmo tempo, porém, nunca fomos tão submissos ao consumismo e tão
passivos em relação à qualidade das informações que nos são apresentadas. Vivemos em uma
sociedade que, por um lado, usufrui de avanços tecnológicos surpreendentes, mas, por outro,
está mergulhada em uma futilidade angustiante (LIPOVETSKY, 2006).
Apenas uma sociedade esclarecida e consciente da riqueza biológica de seu país é
capaz de identificar um discurso progressista meramente mercantilista imbuída em uma
prática que polui nossos mares e rios, que devasta nossos biomas e que extirpa do território
nacional variedades genéticas únicas. Estamos aprendendo que não há como pensar em
desenvolver um país sem investimentos em Educação (básica e universitária) e em estratégias
para conservar suas riquezas, elaborando planos racionais para sustentá-la. Devemos,
portanto, tomar consciência de nosso papel no gerenciamento da biodiversidade e de reflexões
e ações que garantam que o futuro ainda espelhe essa grandeza de formas de vida. Que entre
outras mil, que ainda seja o Brasil a nosso pátria amada e idolatrada. Mas que seja, sobretudo,
diversificada e conservada.