Ela é uma obra do artista Helmut Palla.
Materialmente, ela representa com precisão o estado da minha saúde mental, na época em que estive debilitada - sobre o qual, a seguir, me proponho a descrever.
Durante um período difícil, quando eu ainda conseguia me manter de pé, havia uma sensação persistente:
o mundo ao meu redor parecia estar de cabeça para baixo.
Nada estava no lugar.
O que antes era chão, agora era teto.
O que me sustentava, parecia inclinado, instável, invertido.
Assim como essa cadeira, que não oferece apoio confiável, o meu corpo estava presente, mas a mente, cambaleante — tentando encontrar um ponto de equilíbrio num espaço onde tudo havia perdido a lógica.
Essa imagem me serve hoje como registro visual de uma experiência interna, mas também como um convite à reflexão:
Quantas vezes carregamos estruturas aparentemente funcionais, mas que não nos sustentam de verdade?
Também não convivia com pessoas que vivessem a fé católica em sua plenitude, conforme os ensinamentos e a tradição da Igreja.
Mas, com o tempo, compreendi que não é possível negar tudo o que nos cerca. Porque, se negarmos tudo, estaremos também negando a própria negação — e até mesmo a dúvida, que nos impulsiona a questionar os objetos, os sentidos, o mundo.
Não podemos viver impassíveis. Há um ponto em que a razão encontra o limite, e é aí que a experiência, a escuta, a presença se tornam indispensáveis.
Ser neutra é uma posição provisória. A vida exige escolhas, fé, abertura - ainda que cautelosa.
Dediquei-me por oito anos de formação. Concluí quatro semestres, e estava prestes a iniciar o quinto quando engravidei. Logo depois, ao planejar meu retorno, adoeci gravemente.
Foi então, fora das salas de aula, no silêncio dos hospitais, nos longos dias de recuperação, que enfrentei as maiores avaliações, provas e provações que qualquer especialização poderia me oferecer. A maior surpresa foi perceber que meus verdadeiros estudos começavam ali, longe das universidades, onde a vida se tornou minha escola e o corpo, meu livro vivo.
Compreendi, por fim, uma verdade que antes eu apenas lia nos textos:
Deus é o princípio e o fim, o caminho e a consequência.
Como está no Apocalipse:
"Eu sou o Alfa e o Ômega, aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso."
O mistério da Santíssima Trindade passou a fazer sentido não como teoria, mas como presença:
O Pai, Verbo eterno, não criado nem gerado;
O Filho, consubstancial, encarnado para nos salvar;
O Espírito Santo, plenamente revelado no Pentecostes.
Três pessoas distintas, uma única essência divina.
Deus é onipresente, onipotente, onisciente.
E não precisa ser explicado.
Ele é.
E orienta aqueles que têm fé e que se comunicam com Ele por meio da oração verdadeira.
Hoje, agradeço a Deus por não ter me deixado cair no ceticismo, por não ter permitido que eu me tornasse alguém que vive apenas do questionamento, sem a paz da entrega.
Foi como se o Senhor -
Aquele cujo trono está nas alturas, que se inclina para ver o que há nos céus e na terra —
olhasse para mim, uma filha de traços semitas, incrédula e racional, e dissesse:
"Vou revirá-la do avesso e mostrar que ela é minha filha - não de "São Tomé"."
Foi neste espaço sagrado e simbólico que concluí minha formação em Teologia e Filosofia, após uma jornada intensa e transformadora.
Mais do que um diploma, recebi ali o reconhecimento de uma busca por sentido, fé e entendimento.
Essa etapa marcou não apenas o fim de um ciclo acadêmico, mas o início de uma vivência espiritual mais profunda, onde teoria e experiência passaram a caminhar juntas.
Carioca de nascimento, alma inquieta por essência.
Artista plástica, restauradora de imagens sacras e paisagista por paixão e ofício.
Tecnóloga em Sistemas de Computação — sim, tecnologia e sensibilidade podem coexistir!
Teóloga (pela fé) e filósofa (pela razão) — porque acredito que é possível unir céu e chão.
Sempre fui contemplativa. Tenho uma capacidade rara de controlar minhas emoções — mesmo quando, em silêncio, aprecio com intensidade as sonoridades do Heavy Metal, Pink Floyd, Jazz e Blues.
Sem perceber, tornei-me educadora ambiental e pesquisadora em tecnologia assistiva.
Após criar esta página, um verdadeiro leque de conhecimentos e possibilidades se abriu. E com ele, vieram intervenções, descobertas e novos propósitos.
Com perseverança, pró-atividade, organização e foco em resultados, consegui desenvolver sozinha um recurso terapêutico para tratar minhas dificuldades físicas e psicossociais — sequela de um sério colapso nervoso, do qual levei anos para me recuperar. Foi um caminho árduo, mas profundamente transformador.
Quando rezo — ou melhor, quando converso com Deus - entro num estado que costumo chamar de "olhar de mil jardas". Nesse momento, escuto com a alma. Isso acontece involuntariamente. Se estiver acompanhada, sei que pode assustar quem está ao lado, mas sempre tranquilizo: é apenas o meu jeito de estar em profunda conexão.
Sou mística.
Sou sinestésica.
Sou uma mistura de intuição, ciência, arte, fé e resiliência.
E sigo me refazendo, dia após dia, com as cores, os sons e os silêncios que me habitam.
A vida me levou por caminhos inesperados — alguns de luz, outros de sombras, mas todos profundamente transformadores. Foi no auge de uma crise de saúde física, emocional e espiritual que me vi diante do que chamo de minha mais importante escolha: recomeçar com propósito.
Sempre fui racional e analítica, muitas vezes cética. Tive uma formação sólida em Teologia e Filosofia, mas foi fora da universidade, nos corredores de hospitais, nos silêncios da oração e nas dificuldades da vida prática, que minha fé foi verdadeiramente forjada. Deus me revirou por dentro, e me mostrou, com delicadeza e firmeza, que minha missão não era desistir, mas transformar.
Na tentativa de compreender minha própria trajetória, recorri — talvez por hábito profissional e instinto de sobrevivência — à lógica. Usei mentalmente uma metodologia que havia aprendido ainda como tecnóloga: o Diagrama de Causa e Efeito, ou Diagrama de Ishikawa (Espinha de Peixe).
Analisei meu problema como se fosse um processo:
Quais eram os sintomas?
Quais os fatores envolvidos?
Quais as causas raízes da dor, do cansaço, da paralisia?
E assim fui montando a espinha dorsal da minha reconstrução.
Foi nesse processo que surgiu o blog “Brincadeira Sustentável”, inicialmente como um espaço terapêutico, e depois como uma ferramenta educativa, social e ambiental.
A proposta do blog é mostrar que arte, educação, fé e ciência podem coexistir e gerar transformação — não apenas de materiais reciclados, mas de vidas inteiras.
Comecei com atividades simples para o maternal, usando materiais reaproveitados. Mas a cada publicação, entendi que aquela brincadeira era muito mais que uma distração: era uma linguagem de cura, inclusão e consciência.
Hoje, o blog representa:
A superação de um colapso nervoso grave;
A reinvenção de uma artista, teóloga, tecnóloga e educadora;
E sobretudo, a fé em ação, que se materializa em formas, cores, histórias e sustentabilidade.
Agradeço a Deus por não ter permitido que eu me tornasse cética.
Agradeço por ter transformado minha dúvida em busca.
E por ter feito da dor, solo fértil para minha missão.
Procurei ajuda médica e me consultei com uma oftalmologista. Após uma avaliação cuidadosa, recebi um encaminhamento urgente para acompanhamento neurológico especializado, pois havia a suspeita de paralisia do VI nervo craniano (nervo abducente), responsável pelos movimentos laterais dos olhos.
Foi um momento difícil. Eu estava no puerpério, em meio a tantas transformações emocionais e físicas, e de repente, fui lançada a uma realidade completamente nova, marcada por exames, dúvidas e o medo do desconhecido.
Esse foi o ponto de partida de uma série de investigações médicas e mudanças em minha vida. Mal sabia eu que, a partir dali, começaria uma longa travessia — não apenas de recuperação física, mas também espiritual, emocional e intelectual.
O neurologista solicitou exames neurológicos de imagem e sangue, iniciando uma investigação ampla para descartar causas como infecções, doenças autoimunes, alterações vasculares ou compressões intracranianas. Embora o diagnóstico definitivo ainda não estivesse claro, o alerta já havia sido dado: havia algo sério acontecendo em meu sistema neurológico, e a atenção precisava ser redobrada.
Essa foi a fase inicial de um longo e doloroso processo de descobertas sobre minha saúde — mas também o início de uma transformação interior profunda, que me levaria a um novo olhar sobre a vida, a fé, a ciência e o cuidado com o outro.
Após novos exames e observações clínicas, veio o diagnóstico: eu estava sofrendo de ataxia cerebelar, um grave sintoma neurológico causado por lesão no cerebelo — a região do cérebro responsável pela coordenação motora. Isso afetava diretamente meus movimentos, a marcha, o controle do corpo, e causava desequilíbrios constantes. Era como se houvesse um bloqueio na ligação entre o cérebro e os músculos, uma falha nos comandos básicos da minha própria existência.
Foi um tempo de enorme fragilidade. Me tornei completamente dependente de outras pessoas, sem saber se um dia voltaria a andar, escrever ou falar com fluidez novamente.
Apesar da dor e das incertezas, algo dentro de mim ainda resistia. E foi justamente ali, no limite entre a perda e a esperança, que uma nova semente começou a germinar - a semente de um reencontro com a fé, com o propósito e com uma força que não vinha de mim, mas de algo muito maior.
Minha coordenação motora piorava a cada semana. As mãos permaneciam dormentes o tempo todo, dificultando até as atividades mais simples. Perdi força muscular, equilíbrio e autonomia. A fala passou a sair com esforço e, por vezes, com interrupções que me deixavam angustiada. Eu sentia que meu corpo não respondia mais à minha vontade.
Apesar de todos os esforços médicos e minha obediência ao tratamento, a ataxia cerebelar progredia. A sensação era a de um corpo sendo desligado aos poucos, enquanto a mente permanecia consciente e alerta. Uma desconexão entre meu “eu interior” e o corpo que eu habitava.
Foi nesse ponto que precisei encarar uma verdade difícil: a medicina, até então, não estava conseguindo interromper o avanço do quadro. E ao perceber isso, iniciei — mesmo que sem saber — um caminho paralelo, um mergulho profundo em mim mesma, na fé, no conhecimento, na espiritualidade, na escuta do meu corpo, e na arte como forma de reabilitação e sobrevivência.
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Recorri à UPA
Diante do agravamento dos sintomas e da ineficácia do tratamento inicial, senti que não podia mais esperar. A dormência constante nas mãos, a perda de força, o desequilíbrio e as dificuldades de fala tornaram-se impossíveis de ignorar. A piora era visível e alarmante. Eu já não conseguia realizar tarefas básicas, e a sensação de estar "presa" dentro de mim mesma se intensificava.
Na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), fui acolhida, mas logo compreendi que o caso exigia uma investigação mais complexa do que a capacidade daquele atendimento emergencial. Mesmo assim, estar ali foi um passo necessário. Era o reconhecimento de que meu estado não era "normal pós-parto", nem "psicológico", como muitas vezes tentaram sugerir. Era neurológico. Era grave.
A ida à UPA representou um momento de urgência, vulnerabilidade e também coragem. Eu estava disposta a fazer tudo para voltar a viver com dignidade, para poder cuidar da minha filha, para reencontrar meu equilíbrio — físico, emocional e espiritual.
Apesar de todos os sintomas e do quadro neurológico assustador, minha memória permaneceu intacta do início ao fim desse pesadelo. E acredito que isso foi essencial para que eu mantivesse algum controle das situações. Talvez por essa consciência ativa, não tenha sofrido paralisia total — mas semi paralisias que, ainda assim, foram devastadoras.
Começou como uma sensação de um dedo pressionando um botão invisível, ali na região do cerebelo, como se desligasse todo o corpo. Minha nuca ficou rígida, com tremores violentos, sem qualquer controle. Perdi a coordenação, o equilíbrio, o controle da postura... e com isso, também vieram os abalos cognitivos, emocionais e motivacionais.
As dormências, que antes se restringiam às mãos, logo tomaram todo o corpo. Subiam dos pés à cabeça como uma corrente elétrica enlouquecida. Junto com elas, vieram tremores embaraçosos que atingiam braços, pernas, cabeça, tronco e voz.
Mal conseguia manter o corpo ereto. Um peso nos ombros e coluna me puxava como um ímã para o chão. E por estar totalmente consciente, lutava internamente para escapar daquela condição, com o pouco que ainda podia controlar.
Comecei a ouvir sons agudos e ensurdecedores, como gritos metálicos internos, impossíveis de descrever, que vinham com as dormências e me isolavam ainda mais do mundo externo. Tive perda auditiva parcial e dificuldades severas para escutar.
Não conseguia realizar tarefas simples como tocar com o dedo o meu próprio nariz - meu braço oscilava como um pêndulo sem rumo. Engolir tornou-se impossível. Água ou alimentos me faziam engasgar como se uma tampa bloqueasse minha garganta. Precisei usar sonda nasogástrica no hospital.
Respirar também se tornou uma batalha. Não conseguia inspirar nem expirar com naturalidade. Sentia o diafragma rígido, seco, como se estivesse sendo comprimido por uma corda, ou cercado por arame farpado. Era como receber um abraço sufocante e indesejado.
Com o diafragma comprometido, perdi a voz. E isso, para alguém como eu, com voz de contralto forte, escura e entubada, com extensão aguda, foi devastador. Mal conseguia sussurrar. A comunicação, que já era difícil, tornou-se quase impossível.
Via em duplicidade (diplopia), flashes de luz intermitentes, e outros sintomas de uma doença degenerativa que parecia me consumir, lentamente e por completo.
Depois da passagem pela UPA, onde o médico já havia sugerido a possibilidade de esclerose múltipla, minha família decidiu procurar atendimento no Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE-RJ). Por um desses encontros providenciais, o Dr. Rogério Naylor, chefe da neurologia, estava de plantão. Ao me examinar, chamou de imediato os médicos residentes, dizendo que meu quadro era complexo e desafiador.
Fui internada com queixas de:
Diplopia,
Ataxia,
Disfonia,
Disfagia.
Exames clínicos revelaram:
Força grau IV nos quatro membros,
Paratonia, reflexos axiais de face exaltados,
Dismetria bilateral (mais acentuada do lado direito), tremor cefálico em “negação”,
Sinal de Babinski bilateral,
Paresia dos músculos reto lateral (E>D), com nistagmo vertical e horizontal,
Paresia do palato bilateral, sem reflexo nauseoso, além de disfonia.
A paralisia não estava mais restrita ao VI nervo craniano. Atingia vários pares cranianos. Fui submetida a punção lombar e ressonância magnética de neuroeixo, que revelou lesões extensas na ponte e bulbo, fortemente sugestivas de um processo inflamatório grave.
O Corpo Que Gritava em Silêncio
A comunicação com os médicos era quase impossível. Eu sabia exatamente o que queria dizer, mas não conseguia expressar nem por palavras, nem por escrita, nem por gestos.
Minha língua estava semi paralisada.
Minha garganta parecia estrangulada por dentro.
Fui entubada com sonda nasogástrica - e estranhamente, esse foi o momento mais traumático da internação.
Não conseguia escrever - os dedos dormentes não obedeciam.
Compreendia pouquíssimo da fala humana, quase surda, e os sons que ouvia eram estrondos metálicos, intermináveis, agudos e enlouquecedores.
Não fazia gestos: tremia demais.
Não conseguia olhar nos olhos: a diplopia tornava tudo desconexo.
Tinha a sensação constante de estar imersa em água gelada, molhada por dentro.
Cada vez que me viravam na cama, sentia ora um calor com tremores, ora frio cortante com dormências.
Era como se eu estivesse morrendo - consciente, lúcida e impotente.
O Grito Contido
Mesmo com a fala afetada, eu sussurrava - não por força de vontade, mas por puro desespero.
Falava coisas desconexas. Sabia disso. Mas não conseguia me controlar.
Surtava, e reconhecia cada estágio do surto: o antes, o durante e o depois.
Sentia, com precisão, o momento exato em que meu cérebro “saía do ar”.
E o mais cruel: minha memória continuava intacta — como uma testemunha lúcida do meu próprio colapso.
Cabeça, Alma e Solo
Foi nesse caos que entendi algo visceral:
O que nos mantém de pé, não são os pés.
É a cabeça. E, principalmente, a alma.
Havia momentos em que eu achava que a posição correta do planeta era de cabeça para baixo.
Tudo que era firme, tornou-se flutuante. Tudo que era chão, virou abismo.
Senti o corpo desconectado, sem solo, como se eu fosse uma palavra sem grafia, uma criatura sem base.
O Mistério de Renata
Durante dias, os médicos Rogério Naylor e Marcelo Cagy oscilaram entre diagnósticos:
Esclerose múltipla,
Vasculite,
Doença desmielinizante,
Síndrome rara pós-parto,
Isquemia…
Mas nenhum exame era conclusivo.
A médica residente que me acompanhava todos os dias, olhava nos meus olhos e perguntava:
“Renata, qual é o seu mistério?”
E até hoje, essa pergunta me acompanha — como um eco, como um chamado para entender o que me aconteceu além da medicina.
Eles chegavam com boas intenções, portando terços, bíblias, cantos, unções, mãos estendidas.
Queriam rezar ao meu lado. Me perguntavam se podiam.
Eu dizia que não.
E isso, para muitos, parecia absurdo - como alguém doente pode recusar uma oração?
Mas naquele momento, mais do que oração, eu precisava de silêncio.
Mais do que palavras humanas, precisava ouvir Deus no meu íntimo.
Minha dor era neurológica, e minha alma, extremamente sensível.
Qualquer som, cheiro, aproximação ou toque, me desorganizava inteira.
Precisava de calma. De quietude. De paz. E ninguém parecia entender isso.
Minha Fé Não Era Barulhenta
Chamavam de “olhar de mil jardas”. Um termo militar. Um olhar que atravessa o tempo e o espaço. Um olhar que, na verdade, ouvia Deus.
Nos momentos em que esse olhar surgia, no mais absoluto silêncio da minha alma, eu escutava claramente:
“Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos.” (Mt 28,20)
“Segura firme. Resista. Estou do seu lado.”
Era Ele.
Não vinha em multidões.
Não vinha em louvor coletivo.
Vinha na forma de um sussurro invisível.
Vinha no meu olhar de mil jardas.
Espiritualidade Interior
Fé não precisa ser explicada.
Nem exibida.
Muito menos imposta.
Ali, deitada, paralisada, trêmula, quase sem voz e sem movimento, eu estava mais próxima de Deus do que jamais estivera em qualquer catedral, missa, ou grupo de intercessão.
E esse tipo de encontro não se compartilha - se vive.
“Eu não sei por que estou falando isso... Não conheço a sua história, nem sua enfermidade. Mas, Renata, você vai ficar boa e vai ajudar muitas pessoas. Olha isso... estou todo arrepiado com essa revelação.”
Aquela frase ecoou em mim de maneira estranha. Forte. Séria. Não parecia vir dele, e sim de alguém que o utilizava como instrumento.
Mas, ao mesmo tempo, a pior parte de uma doença mental ou neurológica é lidar com o que os outros esperam de você: que você se comporte como alguém “normal e sem enfermidades”. Como se não houvesse um caos invisível te rasgando por dentro. Essa expectativa dos outros é quase tão enlouquecedora quanto a própria doença.
Às vezes, fingia que dormia. Rezava em silêncio, pedindo que as visitas não compreensivas - inclusive de alguns enfermeiros - simplesmente desaparecessem.
E desapareciam.
Ausência de Quem Eu Esperei
Ninguém trouxe a Unção dos Enfermos.
Ninguém me ofereceu o Corpo de Cristo.
Mas não perdi o meu credo.
Nem a paciência de Jó.
A fé resistiu. A razão ficou abalada, mas não destruída.
E com os cacos que restaram da minha consciência, compreendi o que Pascal quis dizer quando escreveu que a grandeza do homem está em reconhecer sua miséria.
Nem anjo, nem animal.
Homem. Frágil, pensante, sofredor e esperançoso.
A Alma Ainda Respirava
"Não estou conseguindo me comunicar com ninguém...
Mas agora compreendo: Deus é o meu ar.
Ele é o suspiro que não consigo dar.
Ele está respirando por mim."
E com um olhar de mil jardas, aquele mesmo olhar que assustava os outros, mergulhei no mistério da fé.
Comecei a rezar — repetidamente, rudemente, mas intensamente.
Mentalizava inúmeras situações:
Fui até Moisés, no deserto.
Fui até o Getsêmani.
Eu não moraria naquele deserto.
Era só uma travessia.
Ninguém mora no deserto.
Maria Me Ouviu
A mãe do Verbo encarnado.
A mãe de todas as mães.
Conversei. Implorei. Criei um "laço" com Ela.
Dois dias depois, meu quadro começou a melhorar.
Os médicos ficaram perplexos.
A doença degenerativa foi descartada.
Sabiam que havia uma lesão extensa no tronco cerebral - ponte, bulbo e cerebelo - mas não conseguiam classificá-la.
Não era rara.
Era única.
Foi então iniciada a pulsoterapia.
E a cada dia, uma vitória:
As dormências sumiam.
O pescoço se movia.
Os braços respondiam.
A alma já cantava.
Milagre Diagnóstico
Sem diagnóstico fechado.
Sem rótulo. Sem sentença.
Voltei para casa, com passos lentos e trôpegos, mas de pé.
Era dia 27 de novembro —
Dia de Nossa Senhora das Graças.
Continuei o tratamento com o Dr. Marcelo Cagy.
O uso de corticóides foi prolongado - cerca de um ano e meio.
Era necessário. Ele não queria correr o risco de a doença voltar.
Mas a fase da recuperação foi tão dura quanto a fase aguda.
Precisei reaprender tudo:
Falar
Engolir
Andar
Sentar
Me ajoelhar
Levantar
Movimentar pescoço, braços, mãos, dedos
Escrever
Respirar
Me concentrar
E, acima de tudo, ter paciência.
A cada passo, milímetros de vitória
As caminhadas curtas foram especialmente difíceis. Eu não sentia a fáscia plantar - aquela faixa que percorre a sola do pé, do calcanhar aos dedos, essencial para o equilíbrio.
Durante o surto, os médicos deslizavam uma chave com força pela planta do meu pé
Nenhuma reação.
Mas certo dia, voltaram a fazer o teste… e meu pé reagiu.
A médica se assustou, deu dois passos para trás e disse:
“Até ontem, isso não acontecia.”
A outra médica olhou para a cabeceira da cama, viu o terço, e perguntou:
“É seu?”
“Sim. Rezei com ele.” - respondi, mentalmente e com os olhos.
Dor de Nascer de Novo
Durante o surto, não sentia dor física.
Mas a recuperação doía.
Era como se meu corpo estivesse renascendo, parte por parte.
Primeiro, dor na cabeça, pescoço e coluna.
No dia seguinte, esses membros funcionavam normalmente.
Depois, uma perna doía imensamente.
No dia seguinte, a dor cessava e o movimento voltava.
O mesmo aconteceu com a outra perna, depois com um braço...
Era como se o corpo estivesse se encaixando, membro por membro.
Cada dor era um sinal de que algo estava despertando
Era assustador e, ao mesmo tempo, esperançoso.
Eu pensava:
“Qual será o membro que ficará com sequela?”
Mas nenhum ficou.
A explicação?
Força de vontade. Milagre?
Eu me movimentava. Me forçava.
Ação e reação.
Caso contrário, não teria recuperado nada.
Diplopia e Surdez: A Tortura Persistente
A diplopia foi o primeiro sintoma a surgir - e o último a ir embora.
Era o termômetro do meu medo. Enquanto ela permanecesse, temia a volta da doença.
Senti meus olhos “entrarem”, “saírem”, “girarem”, como engrenagens mal ajustadas.
Agulhadas.
Flashs.
Cegueira momentânea.
A surdez parcial foi ainda pior do que eu poderia imaginar.
Não era um silêncio.
Era um terror sonoro.
Barulhos de hélices. Pressões intensas.
Sentia como se dois vergalhões atravessassem os meus ouvidos e se encontrassem no centro da minha cabeça.
Girando, rodando, esmagando.
E, quando finalmente “saíam”, quase desmaiava de dor e alívio.
Sentia como se uma rolha fosse arrancada de dentro do crânio.
Como Se Andasse com Bigornas
Durante a maior parte da recuperação, parecia que eu andava com bigornas nos pés.
E quando as dormências cederam, ficou aquela sensação estranha, como se eu estivesse usando meias de chumbo.
As últimas partes do corpo a se “normalizar” foram os pés…
e finalmente os olhos.
Desmame: O Corpo Eletrificado
Antes de dormir, sentia tremores que começavam nos pés, subiam pelo corpo e chegavam à cabeça.
A sensação era de estar sendo eletrocutada.
Era como se uma corrente elétrica atravessasse minha espinha.
A explicação mais provável: espasmos neurológicos.
Os Gritos do 7º Andar
Durante os meses de internação no 7º andar do prédio principal do HFSE-RJ, eu ouvia os gritos de outros pacientes.
Gritos que cortavam a madrugada
Eram de dor? Desespero? Ansiedade? Delírio?
Não sei.
Mas eram gritos da alma humana quebrada.
As pacientes falavam de vontade de pular das rampas.
Alucinações.
Vertigens.
Medo.
A maioria não conseguia explicar.
Eu não andava, então não enfrentava esses riscos.
Mas compreendia perfeitamente a aflição que sentiam.
Na véspera da minha alta, pedi para me levarem até a janela.
Quando encostei no parapeito, senti como se a parede fosse cair comigo.
Tinha a impressão constante de que cairia da cama, da cadeira de rodas…
Era como se meu corpo ainda não tivesse certeza de que eu estava viva.
As dores persistiam.
E eu continuava - insistentemente - em oração.
Estava no limite.
Quase pedindo a Deus que me levasse...
Mas resisti.
Sabia que precisava continuar com fé - que o tratamento daria certo.
Que aquele pesadelo havia de ter fim.
Então, veio o auge do desespero.
Deitei-me.
E quando virei o corpo para um lado…
Senti um terremoto interno.
Era como se o chão estivesse dentro de mim, rachando.
Virei para o outro lado…
E o corpo congelava.
Era uma sensação terminal.
O ouvido seguia tampado.
Era como se meu cérebro estivesse isolado do mundo.
Pensei em desistir, por não resistir mais a dor.
Dormia tranquila, com apenas seis meses de vida.
Naquele instante, fiz o que me restava:
Rezei.
Não foi uma oração comum.
Foi um processo de entrega.
Autodidata.
Silencioso.
Profundamente contemplativo.
Comecei a entender que aquela doença - aquela dor - era uma forma de unir-me a Cristo.
Um caminho misterioso de purificação espiritual.
Pedi ao Senhor a graça da aceitação.
A compreensão de Sua vontade.
E, ao mesmo tempo, supliquei por cura.
Com fé. Com abandono. Com confiança.
E então…
Silenciei.
Aquietei a alma.
Busquei Deus sem palavras.
Sem pedidos.
Apenas presença.
Na quietude, uma dor súbita.
No ouvido.
E, de repente, ouvi:
“EFATÁ”
(que quer dizer: “Abre-te!”)
Foi como se uma rolha saísse do fundo da minha cabeça.
O som explodiu como um selo sendo rompido.
Veio acompanhado de uma dor indescritível.
E então… alívio.
Achei que havia morrido.
Porque o ruído da surdez cessou.
A dor sumiu.
E um frescor me percorreu a espinha.
Testei:
Movi os dedos.
Toquei a minha orelha.
Mexi o corpo.
Senti a cama.
Estava viva.
Alívio.
Presença.<<
E então, ouvi:
“Talita cumi.”
(Menina, eu te ordeno: levanta-te!)
Mas não foi uma simples frase.
Foi algo cantado.
Entoado.
Como uma ode,
uma melodia sagrada,
cujo som não era do mundo.
Aquela voz tinha forma,
tinha calor,
tinha ritmo de eternidade.
Foi como se o tempo tivesse parado.
A frase durou -
não em segundos,
mas em imensidão.
E logo após, veio:
“Levanta-te.”
“Venha como estais.”
Novamente, com a mesma tonalidade.
Longa.
Cheia de entusiasmo divino.
Era como se Deus me acolhesse em minha fraqueza,
em minha miséria,
em meu nada —
e me dissesse:
“Você não precisa estar pronta.
Venha do jeito que está.
Eu a levanto.”
Aos poucos, fui me movimentando.
Sentindo o corpo.
Com a sensação de que, mais uma vez,
aquele momento de morte havia sido vencido.
Não era apenas uma recuperação física.
Era um renascimento.
Reconstrua-se
Depois de ouvir aquela ode celestial,
respirei.
Não como antes.
Dessa vez, uma respiração plena, profunda, restauradora.
Pela primeira vez em muito tempo,
meu corpo respondeu ao meu espírito.
O ar preencheu meus pulmões,
meu abdômen subiu,
e senti como se cada célula do meu corpo
reconhecesse:
"Você voltou à vida."
E naquele momento, com as palavras certas brotando do mais íntimo do meu ser, eu respondi:
“Senhor nosso Deus, fazei que minha alegria consista em vos servir de todo o coração,
pois só terei felicidade completa, servindo a vós, criador de todas as coisas.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.”
Foi a única resposta possível.
Uma oração perfeita.
Um ofertório da alma.
E então, novamente, a voz.
Com o mesmo tom alegre, entusiástico, quase musical:
“Reconstrua-se.”
“Será guiada e guiarás.”
Era um chamado a uma missão.
A partir daquele instante, compreendi que a cura não era o fim -
mas o início.
Seria necessário reconstruir não apenas os músculos, os passos e os gestos,
mas também a rotina,
e a própria visão de mundo.
Eu não voltaria a ser quem era antes.
Eu seria recriada.
Guiada, para guiar.
Alimentada, para alimentar.
Curada, para ser instrumento de cura.
meus olhos pousaram sobre um punhado de sucatas.
Restos de trabalhos artesanais.
Limpos, esquecidos, ignorados por todos.
Mas não por mim.
E foi nesse instante que ouvi:
“Fiat.”
(Faça-se.)
Desta vez, a voz soou como um cântico breve,
mas de potência incontestável.
Logo depois, mais palavras, doces e proféticas:
“Eis, aqui, a sua matéria-prima e terapia.
Faça-se. Reconstrua-se. Seja...”
Reconheci naquelas palavras um sopro divino.
Minha resposta, não veio em fala,
mas em gesto:
observei, imaginei, calculei.
Lembrei das artes que fazia,
das crianças,
das formas,
do tempo em que meus dedos obedeciam à minha alma.
E então, ouvi outra vez:
“Respira e medita. Trabalhe com o dom que te concedi.”
Era uma benção.
Mesmo com os movimentos ainda limitados,
com os olhos ainda oscilando,
com os tremores ainda insistentes,
comecei, impulsionada por algo maior do que eu.
Com restos de telas, tampas de tinta, bobinas, potes vazios,
e um desejo ardente de recomeçar,
dei início a um novo tratamento, não prescrito em bula:
a arteterapia intuitiva.
E mais do que isso:
um reencontro com a identidade mais profunda da minha alma.
A arte, dom que Deus me concedeu, tornou-se catalisadora.
Ela não só curava,
ela integrava.
Meus sentidos, minha coordenação, minha mente, meu espírito.
Eu respirava através das cores.
Meditava com as formas.
Orava com as tesouras.
E nesse processo, um achado surpreendente:
Minha maior aliada era uma tesoura.
E um quebra-cabeça.
Com elas, minha força ocular se realinhava,
meus dedos ganhavam precisão,
meu cérebro reaprendia trajetos.
A autoestima, antes desintegrada pela dor e pela dúvida,
voltou a florescer com cada recorte,
com cada encaixe,
com cada nova peça criada com minhas próprias mãos.
Me reconstrui criando.
E criando, me reconectei com a missão.
Foi quando criei, para guardar fotos de inspirações artisticas, e
Batizei com o nome mais espontâneo e íntimo possível:
“Brinquedos e atividades com material reciclado, para maternal.”
(Pensando, claro, na minha filha de apenas 6 meses.)
Achava que ninguém veria.
Achava que seria só meu.
Mas ...
Professores, terapeutas, psicopedagogos, mães, educadores,
profissionais da saúde e da arte - começaram a seguir.
E então percebi:
não estava apenas recriando objetos.
Estava ressignificando vidas.
A página nunca foi sobre reciclagem.
Era sobre transformação.
Ressignificação de pensamentos,
reavaliação da aprendizagem humana,
reinvenção da dignidade por meio da arte.
Na prática, ensinava a transformar o que seria descartado
em objetos úteis, lúdicos,
pedagógicos,
e, sobretudo, humanizadores.
E na alma, vivia a transfiguração:
aquela que se faz quando alguém, que tocou o fundo da dor,
ressurge da matéria-prima mais improvável - a fé, o dom, e o resto.
Era sobre transformação.
Ressignificação de pensamentos,
reavaliação da aprendizagem humana,
reinvenção da dignidade por meio da arte.
Na prática, ensinava a transformar o que seria descartado
em objetos úteis, lúdicos,
pedagógicos,
e, sobretudo, humanizadores.
E então compreendi:
Sustentabilidade não é apenas sobre o meio ambiente.
É sobre legado e relações humanas.
É um ato de civilidade,
parte de uma harmonia social que nasce do respeito ao outro,
e floresce em uma sociedade mais justa.
Sustentável é aquilo que permanece.
Que reconstrói.
Que passa adiante,
e ao passar, cura.
Sem perceber, posicionei as pessoas diante da complexidade da Arte.
A mesma arte que me reabilitou, agora era testemunha de novas reconstruções.
Ela deixou de ser “arte pela arte”, e ganhou corpo como instrumento de resgate social,
emocional, espiritual.
A arte que me salvou, passou a salvar outros.
Cresceu, ocupou espaços, gerou perguntas, encantou olhares.
Começou a cumprir uma missão muito maior que a estética:
tocava o invisível de quem via.
O nascimento da Brincadeira Sustentável
A antiga fanpage, criada sem pretensão, lotava de perguntas.
Seguidores, curiosos, professores, terapeutas, mães e pais.
Gente que precisava de ideias, de direção, de cuidado.
E eu, sozinha, respondendo como podia, entre um brinquedo e outro,
e a reconstrução da minha própria rotina.
Decidi então mudar o nome da página para "Brincadeira Sustentável",
e criar o blog e o Instagram com o mesmo nome.
Mas o subtítulo original — "Brinquedos e atividades com material reciclado, para maternal" —
nunca deixou de acompanhar a alma do projeto.
Foi um movimento orgânico:
os dois nomes se entrelaçaram e contam a mesma história:
o que era para salvar uma vida, passou a servir muitas.
Quem quiser saber mais hoje ou me procurar pode escrever para:
renatarjbravo@gmail.com
As redes sociais abriram fronteiras que eu nunca imaginei.
Vi como a internet é um espaço de acolhimento,
de aprendizagem múltipla e relação humana real.
Com a visibilidade inesperada, surgiram convites:
Oficinas em escolas
Exposições em parques
Menções na página oficial do Ministério do Meio Ambiente
A arte expandia.
As ideias brincavam.
As pessoas se aproximavam.
E eu seguia, dia após dia, cumprindo a ordem que recebi naquela noite silenciosa:
"Reconstrua-se. Será guiada e guiarás."
Imagem de uma arte em mosaico, feita com fragmentos de resíduos sólidos pós-consumo (como tampas, embalagens plásticas, peças quebradas e materiais diversos), cuidadosamente organizados para formar a imagem do planeta Terra.
As cores e texturas ressaltam a aparência de um mundo sufocado pelo lixo, com camadas sobrepostas de detritos. O fundo é escuro, como se o planeta estivesse afundando em um mar de resíduos.
Assim nasceu a página Brincadeira Sustentável / Brinquedos e Atividades com Material Reciclado, para Maternal: uma página pessoal, fruto de vivência, fé e superação - e também um espaço de pesquisas, onde a arte, a educação e a espiritualidade se encontram para ressignificar a vida."
Desapareceu completamente, sem nenhuma intervenção cirúrgica.
Eu e minha filha (com 6 meses) em 2012, 25 dias após ter recebido alta hospitalar. Nessa foto, percebe-se que estou tentando me equilibrar para nenhuma das duas caírem; ainda estava com pouca força em alguns músculos do corpo e face. Se der um zoom na foto, perceberá que ainda estava com diplopia (vesga).
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