Os Jogos Olímpicos como megaeventos dos séculos XX e XXI
O Movimento Olímpico
contemporâneo tem como principal
ideólogo Pierre de Freddy, conhecido pelo título nobiliárquico de
Barão de Coubertin. Educador, pensador e historiador, empenhou-se na
reorganização dos Jogos. Sua preocupação fundamental era valorizar
a competição leal e sadia, o culto
ao corpo e à atividade física.
Após conhecer as escolas
inglesas, onde o esporte moderno
foi organizado e se desenvolveu,
Pierre de Coubertin visitou diversos
países para saber como o esporte
era praticado e como ele se estruturava. Depois de vários anos percebeu que em diferentes lugares do
mundo, mesmo sem falar o mesmo
idioma, as pessoas eram capazes
de jogar e competir. Ou seja, o esporte era uma linguagem universal.
Coubertin começou a freqüentar a
École Supérieure des Sciences Politiques na qual teve contato com a
pessoa e a obra de Hipólito Taine
e com um núcleo anglófilo que
buscava compreender a dinâmica
cultural inglesa onde se originava
o modelo de esporte moderno. De
acordo com Tavares (2003) duas
características da sociedade inglesa
interessavam a Coubertin e iriam
influenciar sobremaneira sua obra e
suas ações: uma delas era o ‘espírito
de associação’ da sociedade inglesa corporificado nas associações
privadas de patronato; o segundo foi o sistema educacional inglês,
onde se educava para a vida numa
sociedade.
Embora Coubertin encontrasse em Taine o eco necessário
para a reflexão sobre um modelo
pedagógico foi em Frédéric Le Play
que a reforma social por meio de
uma pedagogia esportiva encontrou
sua principal referência (Mangan,
1986). Coubertin começou a se
preocupar em desenvolver um
modelo de reforma social por meio
da educação e do esporte em uma
perspectiva internacionalista depois de obter pouco sucesso com
programas de caráter educacional
em seu país, a França. MacAloon
(1984) aponta que durante os idos
de 1880 visitou inúmeras escolas
inglesas, uma verdadeira peregrinação, em busca de referência para
seu projeto esportivo-pedagógico,
deslocando, entretanto esse micro
sistema – a educação – do macro
sistema – a sociedade – no qual
ele estava inserido e situado. Não
satisfeito com isso, em 1889, partiu
para os Estados Unidos para conhecer de perto o modelo educacional
americano. Nessa oportunidade
Coubertin mostrou-se surpreso
com os ‘sentimentos democráticos
do catolicismo americano’ que separava igreja do Estado e tolerava
a liberdade de culto, fato menos
comum na Inglaterra. Talvez essa
questão tenha lhe chamado tanta
atenção em virtude da resistência
que os países de cultura puritana
ofereciam à idéia dos jogos Olímpicos, relacionando-os com uma
festa pagã, extinta pelo imperador
Teodósio, um católico fervoroso,
a pedido do bispo de Milão, San
Ambrosio, no ano de 394 (Guttman,
1992; 1978).
Foi, sobretudo, o renascimento do interesse pelos estudos
clássicos, fazendo reviver na intelectualidade de então a fascinação
que a cultura helênica exercia
sobre a cultura européia, além
das descobertas de sítios arqueológicos que permitiam desvendar
acontecimentos relacionados aos
Jogos Olímpicos da Antiguidade,
que levou Pierre de Coubertin a
tomar para si a tarefa de organizar
uma instituição de caráter internacional com a finalidade de cuidar
daquilo que seria uma atividade
capaz de transformar a sociedade
daquele momento: o esporte. Tavares (2003) aponta que o estabelecimento do Movimento Olímpico
nos idos de 1894 coincide com a
criação e proliferação de um amplo
espectro de organizações de cunho
internacionalista, cujo principal
objetivo era a promoção da paz.
Isso porque, embora durante o século XIX tivesse ocorrido um grande desenvolvimento das ciências
humanas e da produção de idéias,
os conflitos ainda eram resolvidos de forma brutal por meio da guerra.
As organizações internacionalistas
buscavam a resolução de conflitos,
tanto de ordem interna como externa, pelo uso da razão e das leis,
e não pelas armas. Dentro dessa
lógica a competição esportiva era
uma forma racionalizada de conflito, sem o uso da violência.
O projeto de restauração
dos Jogos Olímpicos como na
Grécia Helênica veio a público em
25 de novembro de 1892 quando
da ocasião do 5° aniversário da
União das Sociedades Francesas de
Esportes Atléticos, que teve como
paraninfo o Barão de Coubertin.
Naquela ocasião ele manifestaria
seu desejo e intenções com relação
os Jogos: É preciso internacionalizar
o esporte. É necessário organizar
novos Jogos Olímpicos (López,
1992:21). A tarefa audaciosa de promover uma competição esportiva
de âmbito internacional, espelhada
nos Jogos Olímpicos gregos, com
caráter educativo e permanente,
demandava a criação de uma instituição que desse o suporte humano
e material para a realização de tal
empreitada. E assim, em junho de
1894, na Sorbonne, em Paris, teve
início o congresso esportivo-cultural, no qual Coubertin apresentou
a proposta de recriação dos Jogos
Olímpicos e da criação do Comitê
Olímpico Internacional (COI). Inicialmente o Barão intentava realizar
a primeira edição dos Jogos Olímpicos na capital francesa em 1900,
como parte das comemorações da
virada do século que ocorreria em
seis anos. Entretanto, diferentemente do que havia sugerido o proponente, a competição foi antecipada
para o ano de 1896, para Atenas,
como uma deferência aos criadores
dos jogos originais (Rubio, 2006).
A missão e intenção do COI era
organizar os Jogos Olímpicos bem
como a normatizar as modalidades
disputadas, muitas delas recémcriadas e sem um corpo de regras
universalizadas. A idéia inicial, e
que posteriormente foi perpetuada,
era da celebração de uma competição de caráter internacional,
com realização quadrienal, cujos
participantes estariam vinculados a
representações nacionais.
De acordo com Tavares
(1999.a) os Jogos Olímpicos eram
para Coubertin a institucionalização
de uma concepção de práticas de
atividades físicas que transformava
o esporte em um empreendimento
educativo, moral e social, destinado
a produzir reflexos no plano dos
indivíduos, das sociedades e das
nações. A definição de Olimpismo
contida nos Princípios Fundamentais da Carta Olímpica (2001) é
pouco precisa ou, como afirma
DaCosta (1999), uma filosofia em
processo durante o tempo de vida
de Coubertin – o que tem levado estudiosos do tema a discussões
extensas e inconclusivas (Grupe,
1992; Sagrave, 1988). Vale ressaltar
que o termo Olimpismo refere-se ao
conjunto de valores pedagógicos e
filosóficos do Movimento Olímpico,
e não aos aspectos formais e/ou
burocráticos que sustentam a instituição e o fenômeno olímpico.
As modernas Olimpíadas,
ou seja, o período em que ocorrem
as edições dos Jogos Olímpicos,
dividem-se em Jogos de inverno e
de verão, ocorrem de quatro em
quatro anos, como na Antigüidade,
alternando-se a cada dois anos entre
os Jogos de Verão e os de Inverno.
Diferentemente da dificuldade para
definição da sede ocorrida nas edições iniciais, na atualidade, a realização das competições é disputada
por grandes metrópoles dos cinco
continentes, em um processo que
demanda alguns anos.
Para os gregos, os Jogos
representavam um momento de trégua nas guerras e conflitos de qualquer ordem para que competidores
e espectadores pudessem chegar a
Olímpia. Ao longo desse um século
de competições os Jogos Olímpicos
da Era Moderna já sofreram interrupção por causa das duas Grandes
Guerras e boicotes promovidos por
Estados Unidos e União Soviética
na década de 1980, indicando que
o Movimento Olímpico não está
alheio às questões sociais e políticas
do mundo contemporâneo como
desejava Pierre de Coubertin.
A educação olímpica como
legado dos Jogos Olímpicos
Desde que Pierre de Coubertin deu início ao Movimento
Olímpico no final do século XIX, ele
não desejava apenas criar uma competição esportiva. Alguns princípios
éticos, pedagógicos e morais norteavam essa prática, que hoje representam a face pública do Olimpismo.
Dentre esses valores encontram-se
o estímulo à participação da mulher
no esporte, a proteção ao atleta,
o desenvolvimento sustentável, o
respeito à Trégua Olímpica, a promoção da cultura e da educação
olímpica e a organização dos Jogos
Olímpicos.
Esses valores funcionam
como um Código de Conduta do
Movimento Olímpico e buscam
nortear as atitudes e ações de todos
os envolvidos nas atividades olímpicas, sejam elas competitivas, administrativas ou voluntárias. Para tanto
busca combinar esporte, educação
e cultura a partir da harmonia entre
o corpo e a mente, da excelência
em si mesmo, da integridade nas
ações, do respeito mútuo e da alegria no esforço (Rubio, 2009). Cabe
ressaltar que o termo Olimpismo
refere-se ao conjunto de valores
pedagógicos e filosóficos do Movimento Olímpico, e não apenas os Jogos Olímpicos.
Conforme aponta Futada
(2007) enquanto as dúvidas e críticas quanto a eficácia e a validade
de um modelo educacional pautado
na formação de valores estão presentes nas discussões atuais sobre
educação, a perspectiva idealizada
de ser humano como produto e
produtor de uma conduta ética e
justa já contempla outras questões
como o real sentido de justiça e
ética e as relações de poder. Muito
embora já se tenha pensado sobre
condições mínimas necessárias
para que todos tenham acesso e
garantia de qualidade de vida,
conforme a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, sabe-se dos
conceitos distintos e, talvez ainda
mais importante, compreendidos
sobre questões como justiça, ética
e valores para diferentes grupos
sociais. Diante disso apresenta as
principais questões a serem debatidas em um projeto de educação
para os valores olímpicos a partir
das idéias de Muller (2004).
A busca da perfeição e do desenvolvimento harmonioso
O conceito de desenvolvimento integral pode sugerir inúmeras dúvidas quanto a seus objetivos
e amplitude. As críticas com relação
a essa visão de ser humano e de
educação de Coubertin devem
ser compreendidas dentro de uma
perspectiva histórica, que, como já
mencionado, tinha suas influências
significativas para que o mosaico do
Olimpismo fosse construído dessa
forma. Essa abordagem defende
que deve haver uma busca por
uma formação do indivíduo na sua
totalidade, sem fragmentação de
domínios biológicos, psicológicos
e sociais, entendendo o esporte e
a atividade física como elementos
fundamentais para essa realização.
Dentro dessa perspectiva Coubertin
já defendia ao final no século XIX
a existência da Educação Física no
ambiente escolar como disciplina
obrigatória. Sua abordagem, no entanto, não afirmava o esporte como
especialização, mas como a possibilidade de intervenção educacional,
dialogando com outras manifestações como a arte e a música.
A idéia de perfeição humana compreende que os Jogos Olímpicos são a maior demonstração
de façanhas, auto-superação e de
estabelecimento de recordes possíveis dentro do universo esportivo se
comparados a outras competições, e
que esse caráter de transcendência
dos Jogos está presente no próprio
conceito de Olimpismo onde a
busca de desenvolvimento é uma
constante. Esta ideologia pode ter
sido em grande parte influenciada
pelos valores presentes no modelo da agonística grega. O princípio da
agonística é caracterizado, segundo
Durantez (1977), como toda atividade em que exista confronto ou mútua oposição entre os protagonistas
que dela participem, apresentada
em forma de disputa pacífica ou
amistosa, própria e característica da
prática esportiva, mantendo respeito ao competidor que associava o
próprio desempenho às virtudes do
adversário, valorizando o respeito e
dignidade da competição.
A interdependência desses
conceitos significa uma necessidade recíproca do enfrentamento do
obstáculo, pois é somente dessa
forma que os próprios limites e
capacidades podem ser superados.
O competidor compreende ser
parte de um ciclo transformador e,
portanto, comporta-se com a citada
ética esportiva, participando de forma justa, respeitando o adversário,
as regras de competição e o valor
onipresente do embate.
Essa perspectiva é cabível
não somente ao atleta em situações
competitivas de alta performance,
mas a qualquer indivíduo que se
engaja na prática de um esporte ou
atividade física e busca melhoras
em seu desempenho, novamente
sempre pautadas nos princípios de
honestidade e justiça. Novamente
buscando um paralelo com as influências do modelo de educação da
Paidéia Grega, esse entendimento
da agonística como manifestação
presente nas situações esportivas
está diretamente vinculado ao conceito de areté.
Segundo Brandão (1999)
areté é a expressão daquilo que se
poderia definir como excelência ou
superioridade que se revelam particularmente no campo de batalha
e nas assembléias, por meio da arte
da palavra. A areté, no entanto, é
uma outorga de Zeus: é diminuída,
quando se cai na escravatura, ou é
severamente castigada, quando o
herói comete uma hýbris, uma violência, um excesso, ultrapassando
sua medida, o métron, desejando
igualar-se aos deuses. Conseqüência lógica da areté é a timé, a honra
que se presta ao valor do herói, que
se constitui na mais alta compensação do guerreiro. É a dike, a justiça,
que não permite crescer a hýbris ou
o descomedimento.
A disputa individual na superação de limites e aperfeiçoamento físico e espiritual era realizada
tanto nos campos de batalha quanto
nas celebrações mítico-religiosas em
homenagem aos deuses mitológicos
(Jogos Olímpicos, Jogos Fúnebres,
etc.). Nessas ocasiões eram realizadas diversas provas esportivas e
culturais e, dentro desse contexto,
surgia no participante a busca pela
areté não por doutrina imposta, mas
pela incessante busca de valores
e princípios vivos adquiridos na convivência com aqueles que já se
mostravam diferenciados (Munguia,
1992 ; Rubio, 2001).
A ética na atividade esportiva
Sob essa idéia espera-se
desenvolver um dos conceitos basilares do Olimpismo, conhecido
como fair play. O fair-play presume uma formação ética e moral
daquele que pratica e se relaciona
com os demais integrantes de uma
competição, e que esta pessoa não
fará uso de outros meios que não a
própria capacidade para superar os
oponentes. Nessas condições não
há espaço para formas ilícitas que
objetivem a vitória, suborno ou uso
de substâncias que aumentem o
desempenho.
De acordo com Turini
(2002) o fair play é entendido como
a ética do esporte moderno cujo
propósito é orientar a conduta do
competidor na prática esportiva.
Dentre os valores culturais ingleses
com os quais Pierre de Coubertin
teve contato, o fair play foi sem
dúvida aquele que mais influência
exerceu sobre sua concepção de
Olimpismo. A gênese do fair play
está fincada no cavalheirismo, base
do comportamento que definia
o ideal de homem na sociedade
inglesa do século XIX. A transposição para o âmbito esportivo dessa atitude social foi idealizada e empregada desde o surgimento do Movimento Olímpico contemporâneo,
afirmando a relação de projeção
que há entre sociedade-cultura e
movimento olímpico-esporte. Embora hegemônica, a cultura inglesa
não era universal, portanto, é de se
esperar que o fair play também não
representasse uma unanimidade.
Tavares (1999.b) endossa
essa afirmação apontando que as
implicações do fair play enquanto
um conjunto de valores normativos
dos comportamentos no ambiente
da competição reflete a formulação
de um ambiente cultural específico.
Sendo assim, ainda que o Olimpismo, e o fair play em particular,
tenham adquirido alguma expressão hipoteticamente universal, é
altamente recomendável que se
examine o significado atual do fair
play a partir de um cenário cultural
multidimensional. (p. 178)
Em outro trabalho Tavares
(2003) cita o filósofo alemão Gunter
Gebauer para discutir o paradoxo
inerente ao esporte que associa a
‘liberdade de excesso’ (altius, citius,
fortius) e o cavalheirismo (fair play)
por serem dificilmente compatíveis
diante das codificações éticas e princípios morais em um campo onde o
que prevalece são as ações práticas.
Há condições objetivas que levam
a essa conclusão.
Mesmo quando as regras não
mudam ou mudam pouco, o desenvolvimento da preparação física, o aumento da ‘seriedade’ da competição e toda
a carga de mudanças competitivas trazida pela crescente lógica profissional do esporte, determinam uma dinâmica e um
sentido novos que fazem um
mesmo esporte se tornar um
jogo bastante diferente. A busca
pela vantagem, por sua chance,
é o que determina a perspectiva interna que um atleta tem
na situação competitiva, a maneira como organiza ações e a
quantidade e a qualidade dos
recursos que ele mobiliza para
atingir seus objetivos. (p.102)
Diante do universalismo
sugerido e desejado pelo Olimpismo seria de se esperar que o multiculturalismo fosse contemplado em
respeito aos diversos atores sociais
que protagonizam os Jogos Olímpicos, a principal manifestação do
Movimento Olímpico. Entretanto,
assim como o ideal de amadorismo,
o fair play foi concebido a partir
de uma perspectiva cultural dominante, e como decorrência natural
eurocêntrica (ou anglocêntrica), em
um momento em que a estrutura e
organização olímpica restringiam-se
a um grupo restrito de pessoas que
tinham a si próprios como referência para a criação de regras.
Os estudos sobre o fairplay têm recebido a atenção de estudiosos do Olimpismo preocupados com as transformações que
vêm ocorrendo nas regras e conduta
dos praticantes das diversas modalidades esportivas, bem como do
avanço dos estudos culturais (Lenk,
1986; Loland, 1995; Mangan, 1996;
Marivoet, 1998; Tavares, 1999.a).
Isso porque o próprio Movimento
Olímpico criou padrões, normas e
orientações que norteiam e influenciam a prática e o entendimento do
esporte, tanto por parte de quem o
pratica como de quem o assiste.
A compreensão e aplicação do fair play envolvem elementos emocionais e cognitivos que
levaram Lenk (1986) a postular duas
manifestações possíveis:
- o fair-play formal que está
relacionado diretamente
ao cumprimento de regras
e regulamentos escritos e
formalizados que o participante da competição deve
cumprir, em princípio, sendo considerado como uma
‘norma obrigação’ (must
norm). É o comportamento
normatizado, caracterizado
como um comportamento
objetivo.
- o fair-play não formal
– relaciona-se ao comportamento pessoal e aos
valores morais do atleta e
daqueles envolvidos com
o mundo esportivo. Não está limitado por regras
escritas e é legitimado culturalmente. A ausência de
uma regulamentação oficial
confere a ele um caráter
subjetivo. É o comportamento efetivo influenciado
pelos estados emocionais e
motivacionais.
Apesar de caracterizado
por uma abordagem normativa e
conservadora do comportamento
atlético, o fair-play serviu durante
longo período como orientação
para os protagonistas do espetáculo
esportivo, ainda que não fosse seguido durante todo o tempo.
Multiculturalismo, internacionalismo e alteridade
Ao longo do século XX o
esporte constituiu-se como um espaço privilegiado para a construção
de identidades e de desenvolvimento da alteridade, não apenas no
Brasil como na maioria dos países
Ocidentais. Concebo a alteridade
como a consideração e o respeito
às diferenças entre os indivíduos
(Rubio & Daolio, 1997).
A amizade e a fraternidade
são consideradas o coração do Movimento Olímpico. Isso porque levam
à convivência social, ao entendimento e a amizade, à compreensão independente da nacionalidade. Por isso
o Olimpismo se apresenta como
uma linguagem de reconhecimento
universal, o que favorece a busca da
paz e o reconhecimento de igualdade entre os povos. Quando Pierre
de Coubetin desenvolveu a idéia
do Olimpismo acreditava que o
Movimento Olímpico se justificava
como promotor do entendimento
intercultural e que o esporte era
uma linguagem universal a todos os
povos e que, portanto, todas as pessoas do mundo poderiam praticá-lo
independente do lugar onde estivessem. Naquele momento histórico
pouco se estudava a respeito das
diferenças entre os grupos sociais,
principalmente porque os países
europeus dominavam grande parte
do mundo e impunham sua cultura
como melhor e mais correta.
Diante de seu valor socializante, o esporte favorece a cooperação e a amizade internacional,
permitindo aos povos respeitaremse mutuamente. Entende-se a partir
dessa perspectiva a necessidade do
adversário para que a competição
se dê de forma justa e honesta e
para que o indivíduo se descubra
a si mesmo.
Müller (2004) atribui ao
Movimento Olímpico, ao Olimpismo e principalmente ao forte
exemplo dos Jogos Olímpicos, um
potencial estímulo tanto à compreensão internacional através do
esporte, como à prática de relações
de respeito e tolerância interpessoal entre os indivíduos envolvidos na
prática esportiva. Independentemente do nível em que seja feita
a análise, espera-se que o esporte
pautado por ideais filosóficos e
comportamentais traga consigo toda
uma gama de exemplos e geração
de oportunidades para a melhora
dessas competências.
Para Futada (2007) essa
tomada de atitude, que pode ser
compreendida inclusive como uma
transcendência da questão do conviver, está diretamente relacionada
à construção do indivíduo na sua
subjetividade e, no caso do internacionalismo, na construção da
identidade cultural de determinado
grupo. Essa organização prévia da
identidade pessoal e social seria condição para que os envolvidos nessa
dinâmica educacional identificassem o que de fato lhes confere sua
subjetividade e só então passassem
a reconhecer o que lhes é diferente,
numa demonstração de alteridade.
Nesse conceito Coubertin
já aponta para a distinção entre patriotismo e nacionalismo. O Barão
defenderia o espírito de sociedade
presente no Movimento Olímpico
estimulando o amor à pátria. Por outro lado entendia que o pensamento
nacionalista deveria ser execrado
uma vez que junto dele poderiam
estar presentes atitudes xenofóbicas
e preconceituosas. Os Jogos Olímpicos seriam um momento de congregação, onde as disputas de poder
ou as atitudes e intencionalidades de
diferenciação negativa não deveriam
existir. Muito embora essa fosse uma
preocupação inicial de Coubertin na
construção do Olimpismo, estudos
mostram que as dinâmicas do jogo
de poderes e formas de comparação
sempre estiveram presentes no Movimento Olímpico.
A formação do caráter
dentro desses preceitos se dá pelo
autoconhecimento, pelo autocontrole e pela auto-realização. Isso
porque o esporte permite a manifestação da liberdade, da espontaneidade, da fantasia criadora e o desejo
de identificação com as condições
reais da vida. E por meio dessa ação
educadora se dá a formação do caráter. Ao conjunto de diferentes manifestações culturais e a convivência
com muitas formas de cultura é
dado o nome de multiculturalismo,
cujo foco central é o respeito e a
valorização das diferenças, o que
significa a negação do racismo ou
de qualquer outra forma de preconceito ou discriminação. No esporte
isso representa o respeito às diversas
manifestações corporais, sejam elas
olímpicas ou não.
Coubertin entendia que
o Olimpismo, principalmente por
meio dos Jogos Olímpicos, poderia
estimular a compreensão internacional, como o desempenho de
relações de respeito e tolerância interpessoal entre os indivíduos
envolvidos na prática esportiva.
Acreditava que o esporte pautado
por esses ideais filosóficos poderia fornecer exemplos e gerar
oportunidades para o exercício
da cordialidade entre pessoas de
diferentes países, a inclusão e a
paz. Essa atitude de respeito à diferença está diretamente relacionada
à construção do indivíduo na sua
subjetividade, ou seja, naquilo que
há de mais particular e específico da
sua existência. Considerando que
essa subjetividade é construída na
relação com o grupo social ao qual
o indivíduo pertence, estaria assim
formada as bases da identidade
cultural em diferentes países.
No século XIX o esporte
era uma prática de identidade
cultural na Inglaterra. Isso porque
muitas das modalidades esportivas
que conhecemos hoje foram originadas dos jogos e das brincadeiras
realizadas pelas crianças e jovens
nas festas populares. Mais tarde,
para que os estudantes das escolas
inglesas pudessem praticar as modalidades e competir entre si foi
preciso sistematizar um conjunto
de regras, o que depois facilitou a
mesma prática em outros países do
mundo. Isso permitiu a idéia dos Jogos Olímpicos, uma vez que atletas
de vários países podiam competir
sob o mesmo sistema de regras.
Da mesma forma que a
regra facilita a competição entre
atletas de diferentes países ela não
permite que se manifestem outras
formas de praticar a modalidade
esportiva. Essa é a marca do esporte
olímpico: ser praticado da mesma
forma, com as mesmas regras e os
mesmos equipamentos em qualquer
país participante da instituição que
regule a modalidade.
Emancipação, ambientalismo
e autonomia
A dinâmica que subjaz ao
esporte e suas manifestações deveria
ser construída sobre um forte sentimento de responsabilidade social.
Para isso seria necessário atentar
sobre as questões de igualdade de
direitos na prática do esporte, com
o devido respeito às diferenças
individuais. Portanto, questões relacionadas a temas como os direitos
humanos, gênero, diferenças sociais
e etnia no esporte, devem ser não
ignoradas, mas explicitadas e trabalhadas valendo-se do próprio esporte
como ferramenta de desmistificação
e transformação de alguns pressupostos, eliminando preconceitos e
estereótipos que trabalhem no sentido oposto desta proposta.
Pode-se observar que o esporte olímpico não é a única prática
de cultura corporal de movimento. Há ainda muitas modalidades esportivas como forma de identidade
cultural, como é o caso dos Jogos Indígenas, no Brasil ou a pelota basca
na Espanha. A atividade corporal é
uma maneira de um grupo social ou
uma nação apresentar sua história e
suas tradições construídas a partir da
vivência de várias gerações.
A idéia de que a geografia esportiva não coincide com a
geografia política resultou em um
movimento internacional denominado Países Desportivos. Isso
porque hoje em dia há países com
território delimitado, apesar de não
ser reconhecido como Estados Nacionais. É o caso de Barcelona e País
Basco, na Espanha; País de Gales,
Irlanda do Norte e Escócia, no Reino
Unido; Porto Rico, Alaska e Havaí,
nos Estados Unidos da América;
Taiwan, Hong Kong e Macau, na
China e ainda Palestina, Kosovo,
Flandres, Ilhas Norfolk e Quebec.
Esses territórios são delimitados
geograficamente por produções
culturais e sociais que lhes conferem identidades próprias. Entendem a atividade física e o esporte
como atividades livres que devem
ser promovidas e organizadas por
instituições que atuam de acordo
com valores culturais e sociais mais
significativos de cada território e de
cada momento histórico. E assim
promovem as várias manifestações
esportivas do local, sejam elas olímpicas ou não.
O Movimento Olímpico
demonstrou ao longo dos anos grande preocupação com as questões
relacionadas ao patriotismo e ao
nacionalismo. Desde Coubertin se
entendia que o pensamento patriótico não deveria ser exaltado porque
isso poderia gerar atitudes xenofóbicas (preconceito contra o diferente,
o estrangeiro) e preconceituosas.
Os Jogos Olímpicos deveriam ser
um momento de confraternização,
onde as disputas pelo poder ou as
atitudes de discriminação não deveriam existir.
Mais recentemente a
questão ambiental ganhou espaço
na agenda olímpica. O desenvolvimento sustentável parte da noção
de que a preservação a longo prazo
dos recursos naturais e ambientais
não pode ser feita sem que haja,
simultaneamente, um desenvolvimento econômico, social e político que beneficie em particular
os mais desfavorecidos. Durante
a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), denominada
Rio 92, as nações do mundo inteiro assumiram o compromisso de
fazer com que o desenvolvimento
econômico se processe de maneira
a proteger o meio ambiente e os
recursos não renováveis do planeta. A noção de desenvolvimento
sustentável foi acatada como o
conceito central que deve ser respeitado na implementação dos
planos de desenvolvimento para o
século XXI.
A aplicação do conceito de
desenvolvimento sustentável é responsabilidade do conjunto de pessoas ou instituições de importância
reconhecida no desenvolvimento e
na proteção ambiental. Entendendo
que essa questão está em conformidade com a filosofia do Olimpismo,
com a Carta Olímpica, particularmente em seus parágrafos terceiro e
sexto dos Princípios Fundamentais,
e com o fato da sua universalidade,
o Movimento Olímpico entende
que lhe cabe a responsabilidade
especial de participar da aplicação
do conceito de desenvolvimento
sustentável. A agenda 21 foi o documento produzido nesse evento
que busca implementar o conceito
de desenvolvimento sustentável
O Movimento Olímpico
que tem por objetivo contribuir
para a construção de um mundo
de paz e melhor, compartilha a
análise levada a cabo pela Rio 92 e
insere sua ação na perspectiva do
desenvolvimento sustentável. Pelo
fato de o Movimento Olímpico ter,
graças sobretudo à universalidade
do esporte, a capacidade de participar ativamente da implantação
de mediadas em defesa do desenvolvimento sustentável, o Comitê
Olímpico Internacional decidiu
dotar o Movimento Olímpico de
sua própria Agenda 21.
A Agenda 21 é um plano
de ação para ser adotado global, nacional e localmente, por governos
ou pela sociedade civil, em todas
as áreas em que a ação humana
interfere no meio ambiente. Esta é
a tentativa mais abrangente já realizada no sentido de orientar para um
novo padrão de desenvolvimento
para o século XXI, onde se busca
uma relação entre a sustentabilidade ambiental, social e econômica
(DaCosta, 1997). A Agenda 21 do
Movimento Olímpico tem por objetivo incentivar os membros desse
Movimento a participar ativamente
do desenvolvimento sustentável de
nosso planeta. Além disso, propõe
às instâncias dirigentes campos de
integração do desenvolvimento
sustentável as suas políticas. Às
pessoas, indica formas de ação que
as converterão em agentes desse
desenvolvimento sustentável graças
à maneira com que vivem o esporte
e também ao seu modo de ser.
Diante do desafio de implementar as ações propostas para
o desenvolvimento sustentável o
Movimento Olímpico pensou em
um programa de ação que deve
permitir a melhoria das condições
sócio-econômicas, a preservação
do meio ambiente e dos recursos
naturais e o fortalecimento do papel
de seus membros na implantação
dessas ações. Esses programas de
ação abrangem a melhoria das condições sócio-econômicas, a
conservação e gestão dos recursos
para um desenvolvimento sustentável e o fortalecimento do papel dos
principais grupos envolvidos.
A luta contra a exclusão
está presente nesse documento.
Entende o Movimento Olímpico
a prática do esporte tem um papel
essencial na luta contra a pobreza.
Por isso entende que as instituições
esportivas devem apoiar prioritariamente o desenvolvimento da
prática desportiva nas zonas de
menos recursos financeiros. Por isso
as organizações esportivas devem
ajudar a incentivar as instituições
públicas relacionadas com o esporte
a promover a prática desportiva
pelos grupos humanos que, por razões econômicos e de gênero, raça
ou casta, dela se acham excluídos.
Tais instituições devem favorecer
o desenvolvimento prioritário de
infra-estrutura e equipamentos esportivos nas zonas mais carentes ou
marginalizadas.
Há vários anos o Movimento Olímpico considera o meio
ambiente como o terceiro pilar do
Olimpismo, depois do esporte e
da cultura. Para tanto, desenvolveu
uma política de defesa do meio ambiente expressa no “Pacto da Terra”,
bem como as ações de colaboração
com a Rio 92, a organização de
Jogos Olímpicos “verdes” e a realização de conferências mundiais e
regionais sobre o esporte e o meio
ambiente. Isso porque a realização
de uma edição de Jogos Olímpicos
altera profundamente a vida da cidade sede que passa por uma grande
reformulação, alterando o cotidiano
de seus moradores. Por isso, quando
da construção ou remodelação de
instalações ou do planejamento de
eventos desportivo de envergadura,
seus responsáveis cuidarão de realizar um estudo prévio do impacto
ambiental que permita assegurar o
respeito ao meio ambiente cultural,
social e natural.
É por causa dessa preocupação que as atividades e instalações esportivas bem como as
competições deverão ser realizadas
com a preocupação de preservar
os lugares, as paisagens, os bens
culturais e o conjunto das riquezas
naturais de onde elas se realizam.
A escolha dos locais para realizá-las
também deverá ser feita com o cuidado de minimizar o impacto sobre
o meio ambiente produzido pelas
infra-estruturas que lhes serão incorporadas, como vias de circulação,
redes de comunicações e de fornecimento de eletricidade, construção
de alojamentos, abastecimento de
água e de alimentos, lançamento e
tratamento do lixo.
Para assegurar o sucesso
do desenvolvimento sustentável no
Movimento Olímpico é indispensável que o conjunto dos grupos que constituem esse Movimento sejam
agentes ativos na construção de
um mundo melhor. A prática democrática requer o acesso às fontes
de informação. Sob essa ótica, o
Movimento Olímpico pode prestar
uma contribuição concreta no fortalecimento dos papéis sociais das
mulheres e dos jovens, bem como
das comunidades indígenas que representam uma parcela significativa
da população humana e o fato de
que elas são com freqüência objeto
de exclusão social.
Considerações finais
Superado o romantismo
inicial que moveu e motivou a
criação do Movimento Olímpico,
assistimos na atualidade a uma complexa trama de interesses a mover
ideais e ações no campo olímpico.
De um sonho multicultural e multiétnico a um dos maiores negócios
do planeta os Jogos Olímpicos, a
maior realização do Comitê Olímpico Internacional, tornaram-se uma
fonte inesgotável de reprodução de
valores culturais e de projeção da
dinâmica social.
O esporte contemporâneo, bem como o Movimento
Olímpico, deve ser entendido dentro da dinâmica social dos séculos
XX e XXI. Isso porque tem-se visto
uma ruptura da estrutura do esporte atual com os valores propostos
originalmente, o que impede que o
Olimpismo de então seja entendido
e praticado na atualidade da mesma
maneira. Transformado em produto
de consumo o esporte, de maneira
genérica, e o olímpico, mais especificamente, tiveram que se adequar
para satisfazer às exigências de um
mercado consumidor ávido por limites e movimento, premido ainda
pelo veículo máximo de exposição
desses feitos: os diversos meios de
comunicação de massa. Não se
pode negar que a televisão transformou a audiência do esporte em
todo o mundo, e na medida que
começou a perder a capacidade de
subsistir enquanto espetáculo ao
vivo, tornou-se dependente de patrocínios gerados pela abrangência
das transmissões televisivas. Essa
situação provocou o incremento
do profissionalismo no esporte,
tanto no que se refere à possessão
do espetáculo pela televisão como
em relação àquele que protagoniza
o espetáculo, o atleta.
O distanciamento gradativo dos valores inicialmente
apregoados tem levado à promoção
de ações identificadas com valores
éticos universais e, portanto, de ampla aceitação, como foi a proposta
olímpica inicial. Discutir a função
da educação olímpica surge em um
momento de crise desses valores e
de reflexão sobre os rumos que o
movimento como um todo toma em um mundo marcado pelas diferenças não apenas culturais, mas
também econômicas e sociais.
Resgatar a dimensão ética
e moral das práticas culturais e corporais de movimento nos mobiliza
na construção de caminhos que correm para além das práticas educativas formais. A proposta que se fez
ao longo desse texto vem no sentido
de apontar direções sobre os temas
caros aos valores olímpicos, sem,
contudo ditar as formas como fazêlo. Isso porque em outros momentos
históricos os conteúdos foram universalizados e circunscritos a práticas hegemônicas, desprezando as
especificidades das culturas locais.
Sendo assim, ficam aqui apontados
os temas gerais que norteiam essa
proposta e um convite a resgatar de
seu grupo social os elementos a serem desenvolvidos e interpretados
dentro desse conjunto de valores
que se dizem olímpicos.
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