Arte, educação e desenvolvimento infantil. Embora hoje sejam práticas comuns na Educação Infantil, elas nasceram de movimentos culturais e pedagógicos profundos.
1- Raízes antigas: o gesto de recortar e recompor
O ato de recortar e reorganizar imagens é muito mais antigo do que a escola:
China (século II) - Com a invenção do papel, surgem as primeiras silhuetas recortadas (jianzhi), usadas em rituais, festas e narrativas visuais.
Idade Média europeia - Recortes em papel e pergaminho eram usados para ornamentação de manuscritos, ex-votos e imagens devocionais.
Séculos XVII-XVIII - Silhuetas recortadas e colagens decorativas aparecem em álbuns familiares e livros artesanais.
Ainda não eram práticas infantis, mas já traziam a ideia de compor sentido a partir de fragmentos.
2- A colagem na arte moderna: a virada conceitual
O reconhecimento da colagem como linguagem criativa ocorre no início do século XX:
Cubismo (1907-1914) - Picasso e Braque introduzem a colagem artística (papier collé), rompendo com a arte puramente representativa.
Dadaísmo e Surrealismo - A colagem passa a expressar o imaginário, o acaso, o inconsciente e a crítica social.
- Essa revolução artística influenciou diretamente a educação: se o artista cria com fragmentos, a criança também pode criar sem precisar dominar o desenho acadêmico.
3- Entrada na pedagogia: quando vira atividade infantil
Século XIX - Educação sensorial
Friedrich Fröbel, criador do Jardim de Infância, propôs atividades manuais chamadas dons e ocupações.
Recortar, dobrar e colar eram vistos como exercícios de:
coordenação motora fina
percepção espacial
ordem e sequência
Início do século XX - Escola Nova
Educadores passaram a valorizar a expressão espontânea da criança:
Maria Montessori
Introduziu atividades de recorte progressivo para autonomia, concentração e precisão.
Ovide Decroly
Defendeu o uso de imagens recortadas ligadas ao interesse da criança.
John Dewey
Enfatizou o “aprender fazendo”: a colagem como experiência significativa.
O recorte e a colagem deixam de ser mero treino motor e passam a ser linguagem expressiva.
4- Consolidação no século XX: infância, psicologia e arte
Com os estudos do desenvolvimento infantil:
Jean Piaget
A colagem favorece a construção do pensamento simbólico.
Lev Vygotsky
A atividade promove mediação cultural e linguagem visual.
Viktor Lowenfeld (arte-educação)
Defendeu a colagem como forma legítima de expressão artística infantil.
A partir daí, recorte e colagem entram definitivamente nos currículos da Educação Infantil.
5- Por que recorte e colagem são tão importantes para crianças?
Eles unem, numa única atividade:
- desenvolvimento cognitivo
- coordenação motora fina
- percepção visual e espacial
criatividade sem medo do “erro”
- narrativa visual e simbólica
- autonomia e autoestima
Além disso, permitem que todas as crianças criem, independentemente do nível de desenho.
6- Visão contemporânea
Hoje, o recorte e a colagem são compreendidos como:
linguagem artística
prática interdisciplinar (arte, linguagem, matemática, ciências)
ferramenta inclusiva
meio de expressão emocional
estratégia sustentável (uso de materiais reutilizados)
- Síntese final
O recorte e a colagem como atividades infantis nascem do encontro entre arte moderna, pedagogia ativa e estudos sobre o desenvolvimento da criança, transformando o gesto simples de recortar em uma poderosa forma de pensar, sentir e aprender.
Autora: Renata Bravo
A seguir apresento o artigo científico com foco em Arte-Educação e Psicomotricidade, mantendo o relato de experiência com análise crítica, adequado para periódicos de Educação, Arte-Educação, Psicomotricidade ou Educação Inclusiva.
Recorte e colagem na arte-educação como práticas psicomotoras inclusivas: um relato de experiência
Resumo
Este artigo analisa as atividades de recorte e colagem sob a perspectiva da Arte-Educação e da Psicomotricidade, a partir de um relato de experiência com abordagem qualitativa e reflexiva. A experiência decorre de um contexto de limitações psicomotoras e perceptivas associadas a um diagnóstico médico de suspeita de esclerose múltipla, que resultou em prejuízos na coordenação motora e na percepção visual. A prática sistemática de recorte e colagem evidenciou-se como uma linguagem artística acessível e um recurso psicomotor potente, favorecendo a reorganização do gesto, da percepção e do pensamento. Os resultados indicam que tais práticas ultrapassam o caráter meramente lúdico, configurando-se como estratégias pedagógicas inclusivas que integram corpo, cognição e expressão simbólica ao longo da vida.
Palavras-chave: Arte-Educação; Psicomotricidade; Recorte e colagem; Educação Inclusiva; Relato de experiência.
1- Introdução
A Arte-Educação, enquanto campo epistemológico, compreende a arte como linguagem, experiência sensível e forma de conhecimento. Associada à Psicomotricidade, amplia-se a compreensão do processo educativo ao reconhecer o corpo como mediador das aprendizagens cognitivas, afetivas e simbólicas. Nesse contexto, práticas artísticas que envolvem o gesto, o manuseio de materiais e a organização espacial tornam-se relevantes para o desenvolvimento integral do sujeito.
O recorte e a colagem, frequentemente associados à Educação Infantil, são práticas historicamente subvalorizadas nos níveis mais avançados da educação. Entretanto, quando analisadas à luz da Arte-Educação e da Psicomotricidade, revelam-se como experiências complexas que mobilizam coordenação motora fina, percepção visual, planejamento da ação e expressão criativa. Este artigo tem como objetivo analisar criticamente o recorte e a colagem como práticas pedagógicas psicomotoras e inclusivas, a partir de um relato de experiência pessoal articulado ao referencial teórico da área.
2- Referencial teórico
2.1 Arte-Educação: a arte como linguagem do pensamento
Segundo autores como Lowenfeld e Brittain (1977), a experiência artística favorece a expressão do pensamento, das emoções e da criatividade, sem a exigência de padrões estéticos pré-definidos. Na Arte-Educação contemporânea, a ênfase desloca-se do produto final para o processo, valorizando o gesto, a experimentação e a construção de sentido.
A colagem, em especial, permite a criação a partir de fragmentos, promovendo reorganizações simbólicas que refletem o modo como o sujeito percebe e reconstrói o mundo.
2.2 Psicomotricidade e integração corpo-mente
A Psicomotricidade compreende o movimento como base da estruturação psíquica e cognitiva (WALLON, 1975). Atividades manuais, como o uso da tesoura e da cola, envolvem coordenação bilateral, controle tônico, lateralidade, percepção espacial e integração visomotora, sendo fundamentais para a organização do gesto e do pensamento.
Sob essa perspectiva, o fazer artístico não é apenas expressivo, mas estruturante do desenvolvimento humano.
2.3 Práticas inclusivas em Arte-Educação
A Arte-Educação apresenta-se como um campo privilegiado para práticas inclusivas, pois admite múltiplas formas de participação e expressão. O recorte e a colagem permitem adaptações, respeitam os ritmos individuais e valorizam as potencialidades do sujeito, alinhando-se a princípios inclusivos e ao Desenho Universal para a Aprendizagem.
3- Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo relato de experiência, com análise crítica fundamentada nos referenciais da Arte-Educação e da Psicomotricidade. A experiência decorre de um processo pessoal vivenciado diante de limitações psicomotoras e perceptivas, incluindo prejuízos na coordenação motora fina e episódios de diplopia, associados a um diagnóstico médico de suspeita de esclerose múltipla.
As atividades desenvolvidas consistiram na realização progressiva de práticas de recorte e colagem, com diferentes níveis de precisão, materiais e desafios visuais, sendo analisados os impactos dessas práticas sobre aspectos motores, perceptivos, cognitivos e expressivos.
4- Resultados e discussão
Os resultados evidenciaram melhorias na coordenação motora fina, na integração visomotora e na organização espacial, além do aumento da capacidade de concentração e planejamento da ação. Do ponto de vista da Arte-Educação, observou-se que a colagem possibilitou a expressão simbólica sem a exigência do domínio do desenho, reduzindo frustrações e ampliando a autonomia criativa.
A análise psicomotora indica que o uso contínuo da tesoura e da cola favoreceu a reorganização do gesto e do controle motor, corroborando a ideia de que o movimento é estruturante do pensamento. A experiência problematiza a visão utilitarista ou infantilizada dessas práticas, demonstrando seu potencial educativo em contextos de inclusão e aprendizagem ao longo da vida.
5- Considerações finais
Conclui-se que o recorte e a colagem, enquanto práticas da Arte-Educação, constituem recursos psicomotores inclusivos capazes de integrar corpo, percepção, cognição e expressão simbólica. O relato de experiência analisado evidencia que tais práticas favorecem não apenas o desenvolvimento motor, mas também a construção do sujeito enquanto ser criativo, autônomo e pensante.
Defende-se, portanto, a ampliação do uso do recorte e da colagem em diferentes contextos educacionais, reconhecendo-os como práticas artísticas legítimas e pedagogicamente potentes no campo da Arte-Educação e da Psicomotricidade.
Referências (sugestão)
LOWENFELD, V.; BRITTAIN, W. Desenvolvimento da capacidade criadora. São Paulo: Mestre Jou, 1977.
MANTOAN, M. T. E. Inclusão escolar. São Paulo: Moderna, 2003.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
WALLON, H. A evolução psicológica da criança. Lisboa: Edições 70, 1975.

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