contratempos. As crianças devem caminhar aos pares, numa linha reta. Se elas prestam atenção em torno delas, é apenas por razões de segurança, para evitar trombar com o tráfego ou com transeuntes. O caminho do crocodilo não é um modo de aprender; o aprendizado ocorre apenas no destino, onde o professor, mais uma vez, se posiciona na frente da sala para dirigir-se aos alunos. Mas quando essas mesmas crianças – acompanhadas por um dos pais ou guardiões, amigos, ou sozinhas – vão da escola para casa e vice-versa, elas caminham de uma maneira bem diferente. Às vezes com pressa, às vezes tranquilamente, saltitando e se arrastando alternadamente, a atenção da criança é capturada – ou, na visão do adulto que a acompanha, distraída – por qualquer coisinha: da dança de luzes e sombras ao voo dos pássaros e latido dos cães, do perfume das flores a poças d’água e folhas caídas, inúmeras pequenezas como caramujos e coquinhos, moedas perdidas e lixinhos reveladores. São essas coisas que fazem da rua um lugar tão interessante para o pequeno detetive que caminha com os olhos fixos no chão (Ingold; Vergunst, 2008, p. 4).
Para a criança a caminho da escola, a rua é um labirinto. Como o escriba, copista ou desenhista cujos olhos ficam na ponta dos dedos, a criança segue, sempre curiosa, seu vai e vem, mas sem uma visão de comando ou vislumbre de um fim. O desafio consiste em não sair da trilha, e para isso ela precisa se
manter alerta. Em suas afetuosas lembranças da infância em Berlim durante a virada do século vinte, Walter Benjamin descreveu vividamente o fio de Ariadne que ele seguia no, e em torno do, Tiergarten: suas pontes, canteiros de flores, pedestais de estátuas (que, perto dos olhos, pareciam mais interessantes
que as figuras erigidas sobre eles), quiosques escondidos entre os arbustos. Foi lá, diz Benjamin, que ele experimentou pela primeira vez aquilo para o que apenas posteriormente foi encontrar uma palavra. Essa palavra era “amor” (Benjamin, 2006, p. 54).
Mas, quando crescemos, aprendemos a deixar de lado essas tolices de criança. O crocodilo devora o detetive, e a disciplina engole a curiosidade. Para recuperar o que foi perdido, temos que sair da cidade, caminhar pela mata, campos ou montanhas governados por forças ainda não disciplinadas. Para o adulto, nota Benjamin, é necessário algum esforço para voltar a apreender as ruas da cidade com a mesma perspicácia de uma trilha no meio rural. Para obter sucesso – ou seja, retomar o labirinto e se perder nele – “os nomes de ruas devem falar ao andarilho urbano como o estalar de galhos secos, e as pequenas ruas no coração da cidade devem refl etir as horas do dia… tão claramente quanto um vale entre as montanhas”. Trata-se de uma arte, admite Benjamin (2006, p. 53-54), que ele perdeu na infância e só veio retomar no fim da vida.
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Para a maioria de nós, urbanitas disciplinados pela educação, as ruas não são um labirinto. Nós andamos por elas não pelo que revelam ao longo do caminho, mas porque elas nos permitem transitar de um ponto a outro. Ainda podemos nos perder nas ruas, mas essa perda é sentida não como descoberta ao longo de um caminho que não leva a lugar algum, mas como um revés na rota para uma meta predeterminada. Queremos chegar de um lugar ao outro, e somos frustrados por curvas erradas e becos sem saída. Para o consumidor ou trabalhador urbano, portanto, as ruas são menos um labirinto que um dédalo. Tecnicamente falando, o dédalo difere do labirinto por oferecer não um único caminho mas múltiplas escolhas, entre as quais a opção é feita livremente mas que, em sua maioria, levam ao fi m da linha (Kern, 1982, p. 13).Também difere no sentido de que suas avenidas são fl anqueadas por barreiras que obstruem qualquer visão que não seja a do caminho imediatamente à frente. O dédalo, portanto, não nos abre o mundo como faz o labirinto. Pelo contrário: ele o fecha, prendendo seus detentos numa falsa antinomia entre liberdade e necessidade.
Seja sobre ou sob o chão, navegando nas ruas ou no metrô, os pedestres urbanos devem negociar um dédalo de passagens delimitadas por muros ou prédios altos. Uma vez numa via específi ca, eles não têm alternativa senão continuar nela, visto que há paredes em ambos os lados. Mas essas paredes normalmente não são nuas. São, pelo contrário, repletas de propagandas, vitrines e coisas do tipo, que informam os pedestres sobre possíveis caminhos laterais que possam escolher tomar – e que, quando a oportunidade se apresenta, podem satisfazer seus desejos. A cada momento há uma bifurcação, uma decisão que deve ser tomada: ir para a esquerda, para a direita, ou possivelmente seguir em frente. O trajeto em um dédalo pode ser portanto representado como uma sequência estocástica de movimentos pontuada por momentos de decisão, de modo que cada movimento se baseia numa decisão tomada previamente. É, essencialmente, um empreendimento estratégico semelhante a um jogo. Isso não signifi ca negar as manobras táticas que ocorrem quando pedestres e mesmo motoristas se acotovelam para passar pela multidão em uma rua ou metrô lotados. Mas negociar a passagem através da multidão é uma coisa; encontrar seu caminho através de um dédalo é outra bem diferente.
No caminhar pelo labirinto, por outro lado, escolher não é uma questão. O caminho leva, e o caminhante deve ir para onde quer que ele o leve. Mas o caminho nem sempre é fácil de seguir. Como o caçador que persegue um animal ou um andarilho numa trilha, é importante manter os olhos abertos para sinais sutis – pegadas, pilhas de pedras, entalhes nos troncos das árvores – que indiquem o caminho adiante. Esses sinais te mantêm no caminho, e não te convidam a se afastar dele, como fazem as propagandas. O perigo está não em chegar a um beco sem saída, mas em sair da própria trilha. A morte é um desvio, não o fi m da linha. No labirinto, em momento algum se chega bruscamente a um fi m da linha. Não há paredes ou muros bloqueando o movimento para frente. Você está destinado a continuar por um caminho que, em caso de descuido, pode te levar para cada vez mais longe dos vivos, para o convívio com os quais pode nunca mais voltar. No labirinto, é de fato possível fazer uma curva errada, mas não por escolha. Pois naquele momento, você nem notou que o caminho se bifurcava. Você estava sonâmbulo, ou sonhando acordado. Caçadores indígenas frequentemente falam daqueles que, instigados pela presa que estavam perseguindo, adentram o mundo dela, no qual os animais aparecem para eles como humanos. Lá, eles levam suas vidas enquanto são considerados perdidos, presumidamente mortos, pelo seu próprio povo.
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O dédalo coloca toda a ênfase nas intenções do viajante. Ele possui um objetivo em mente, uma destinação projetada ou horizonte de expectativas, uma perspectiva a realizar, e está determinado a alcançá-la. Essa meta mais ampla pode, é claro, se desdobrar em diversos objetivos subsidiários. E também pode ser complicada por todas as outras metas confl itantes que o assediam por todos os lados. As escolhas nunca são simples, e raramente são feitas com base em informação sufi ciente para que não reste uma margem de incerteza considerável. Não obstante, no dédalo, o molde da ação exterior segue
o molde do pensamento interior. Quando dizemos que a ação é intencional, queremos dizer que há uma mente trabalhando, operando a partir de dentro do ator, conduzindo-o para um propósito e direção que estão além das leis físicas do movimento. Intenções distinguem os viajantes num dédalo de bolas num
jogo de bilhar, que – supõe-se – não fazem ideia de para onde estão indo, e são incapazes de deliberar se desejam ir para uma direção ou outra. No dédalo, a intenção é a causa, e a ação, o efeito.
E não obstante, o viajante intencionado, envolto no espaço de suas próprias deliberações, encontra-se ausente do mundo em si. Ele deve decidir para onde ir, mas, uma vez tendo estabelecido uma trajetória, não precisa mais olhar para onde está indo. No labirinto, por outro lado, aquele que segue o caminho não tem outro objetivo senão continuar, seguir em frente. Mas para fazê-lo, sua ação deve estar acoplada de modo próximo e retido com sua percepção – ou seja, um monitoramento sempre vigilante do caminho, à medida que ele vai se desdobrando. Colocado de forma simples, você tem que prestar atenção onde pisa, e também ouvir e sentir. Em outras palavras, seguir o caminho é menos intencional do que atencional. O andarilho é levado para fora, para a presença do real. Assim como a intenção está para a atenção, a ausência está para a presença, portanto. Esta é também a diferença entre vagar e navegar (Ingold, 2007, p. 15-16). É claro que há uma mente operando no vagar atencional do labirinto, assim como na navegação intencional no dédalo. Mas trata-se de uma mente imanente ao próprio movimento, e não uma fonte originadora à qual esse movimento pode ser atribuído enquanto efeito.
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Entre navegar no dédalo e vagar no labirinto está toda a diferença entre os dois sentidos de educação com os quais comecei este texto: por um lado, a indução (trazer para dentro) do aprendiz às regras e representações, ou aos “mundos intencionais” de uma cultura; por outro, a ex-dução (levar para fora)
do aprendiz no próprio mundo, conforme ele se lhe apresenta através da experiência. Decerto, não há nada de novo ou radical em sugerir que o conhecimento é relativo ao seu ambiente cultural. Que cada mundo não é mais que uma visão de mundo, e que essas perspectivas ou interpretações são múltiplas
e possivelmente confl itantes, tem sido o ponto de partida da filosofia da educação moderna, e mesmo pós-moderna. Os alunos são familiarizados com a ideia de que o conhecimento consiste em representações, e são sabidos o suficiente para perceber que as representações não devem ser confundidas com as “coisas em si”. Mas como observou o fi lósofo da educação Jan Masschelein, não é aí que está o problema.
O problema está, pelo contrário, no modo como um mundo que só pode
ser conhecido através das representações que fazemos dele, de uma pletora de
imagens, nos escapa no decorrer do próprio movimento através do qual tentamos retê-lo diante de nós. Nosso esforço de capturar as coisas sempre nos deixa de mãos abanando, se agarrando inutilmente a refl exos. Não podemos mais nos abrir para o mundo, e nem ele para nós. “Como”, pergunta Masschelein
(2010b, p. 276), “podemos transformar o mundo em algo ‘real’; como podemos tornar o mundo ‘presente’, nos oferecer novamente o real e descartar os escudos ou espelhos que parecem nos trancar cada vez mais em autorrefl exões e interpretações, em voltas sem fi m a ‘pontos de vista’, ‘perspectivas’ e ‘opiniões’”? Como, em suma, podemos escapar do dédalo? A resposta de Masschelein é, um tanto literalmente, “através da exposição”. E é precisamente isso que visa a educação no sentido de ex-dução – ou seja, caminhar pelo labirinto.
Nesse sentido, a educação não tem nada a ver com objetivos rotineiros tais como “obter uma distância crítica” ou “assumir uma perspectiva” sobre as coisas. Não se trata de chegar num ponto de vista. No labirinto, não há ponto de chegada, não há destino fi nal, pois cada ponto já se encontra no caminho para algum outro. Longe de assumir um ponto de vista ou perspectiva a partir dessa ou daquela posição, o ato de caminhar continuamente nos remove longe de qualquer ponto de vista – de qualquer posição que possamos adotar. “Caminhar”, explica Masschelein (2010b, p. 278), “é colocar em questão essa posição; trata-se de ex-posição, de estar fora-de-posição”. É isso que ele entende por exposição. Não é que a exposição nos ofereça uma perspectiva ou conjunto de perspectivas diferentes; por exemplo, quando estamos no nível do solo, que difere do que obtemos quando estamos mais no alto, ou no próprio ar. Na verdade, ela não revela o mundo a partir de nenhuma perspectiva. A atenção do caminhante vem não da chegada a uma posição, mas de ser constantemente apartado dela, do próprio deslocamento.
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À primeira vista, essa conclusão parece notavelmente próxima à que chegou o psicólogo James Gibson (1979). Pioneiro na abordagem ecológica para a percepção visual, Gibson havia proposto que não percebemos o que nos cerca a partir de uma série de pontos fi xos; tampouco, argumentou ele, é tarefa da mente compor, na memória, as perspectivas parciais obtidas a partir de cada ponto num quadro compreensivo do todo. Pelo contrário, a percepção procede através do que ele chamou de caminho da observação. À medida que o observador segue seu caminho, o padrão de luz que chega aos seus olhos a partir das superfícies refl etoras presentes no ambiente sofre modulação contínua; e a partir das invariantes subjacentes dessa modulação, as coisas se nos revelam pelo que elas são. Ou mais precisamente, elas revelam aquilo que propiciam (afford), na medida em que ajudam ou atrapalham o observador na sua jornada, ou na realização de uma certa linha de atividade. Segundo Gibson, quanto mais experientes nos tornamos em andar por esses caminhos de observação, mais capazes nos tornamos de notar e responder fl uentemente aos aspectos salientes do nosso ambiente. Ou seja, nos submetemos a uma “educação da atenção” (Gibson, 1979, p. 254; ver também Ingold, 2001).
Não obstante a semelhança superfi cial, a educação para a qual o andarilho se abre através da exposição, segundo Masschelein, é o inverso do que Gibson tinha em mente. Não se trata de tomar, e reverter em sua vantagem, as propiciações (affordances) de um mundo que já está lá. Lembremos que o verbo francês attendre signifi ca “esperar”, e que, mesmo em inglês, atender (attend) a coisas ou pessoas carrega uma conotação de cuidar delas, servi-las, e acompanhar o que estão fazendo. Nesse sentido, a atenção acompanha um mundo que não está pronto, que é sempre incipiente, que se encontra no limiar da emergência contínua. Em suma, enquanto para Gibson o mundo espera (waits for) pelo observador, para Masschelein o caminhante atende (waits upon) ao mundo. À medida que o caminho acena, o andarilho se submete, e fi ca à mercê daquilo que acontece. Caminhar, diz Masschelein (2010a, p. 46), é ser comandado por aquilo que ainda não está dado, mas está a caminho de sê-lo.
O filósofo Henri Bortoft, em sua defesa dos princípios da ciência goethiana, avança um argumento semelhante através de uma inversão engenhosa da expressão “ela aparece”. Na ordem convencional e gramaticalmente correta das palavras, “ela” vem antes de “aparece”: a coisa existe antes de sua revelação, pronta e esperando para ser percebida pelo observador que se move, cuja atenção é afi nada com aquilo que ele propicia. Ao caminhar no labirinto, contudo, a atenção se desloca a montante, para o “aparecimento daquilo que aparece”. O andarilho espera, acompanha a emergência “dele”. O aparecer
de uma coisa equivale à sua emergência, e testemunhar esse aparecimento é comparecer ao seu nascimento. Dizer “aparece ela”, comenta Bortoft (2012, p. 95-96), “pode ser uma gramática ruim, mas soa melhor fi losoficamente”, uma vez que contorna a quimera que nos levaria a supor que as coisas existem antes dos processos que as fazem emergir.
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Aparecer coisas, eu sugiro, equivale a imaginá-las. Imaginar algo é aparecê-lo, assistir na sua gestação e comparecer ao seu nascimento. Portanto, o poder da imaginação está não na representação mental, tampouco numa capacidade de construir imagens antes da sua realização material. Imaginar é um movimento de abertura e não de fechamento; produz não fi ns mas começos. Como dizemos coloquialmente, a propensão da imaginação é para vagar, buscar um caminho à frente, e não seguir uma sequência de passos rumo a um fim preestabelecido. Nesse sentido, a imaginação é o impulso generativo de uma vida que é perpetuamente impelida pela esperança, promessa e expectativa da sua continuação. Nessa vida, como afi rma o fi lósofo Gilles Deleuze (2001, p. 31), não há reais, apenas virtuais – as coisas encontram-se a caminho de serem atualizadas, ou dadas. Essa vida não pode ser encontrada num registro
de realizações, e tampouco pode ser reconstruída como um curriculum vitae,
através do arrolamento de certos marcos fi xados ao longo de uma rota já percorrida. Ela passa pelos marcos como um rio entre as margens, se afastando
deles à medida que vai fl uindo. É isso que Deleuze (2001, p. 28) quer dizer
quando fala de uma vida (ao invés de a vida), que se desdobra naquilo que ele
chama de “plano de imanência”. Diante do que foi dito até agora, já deve estar
claro que esse plano – de virtualidade, do aparecer daquilo que aparece – é
também o plano do labirinto. A vida imanente é, em uma palavra, labiríntica.
Para explicar o que ele quer dizer, Deleuze dá como exemplo um episódio tirado de um romance de Charles Dickens, Our mutual friend. Um certo Sr. Riderhood, homem desagradável e de má reputação, havia sido resgatado por transeuntes após sofrer um acidente no rio Tâmisa. Seu barco a remo tinha sido virado por um barco a vapor. Depois de quase se afogar, ele é carregado para uma casa próxima, para onde um médico é chamado. Enquanto sua vida se equilibra na balança, as investigações pouco conclusivas do médico são recebidas por seus bravos salvadores e pela dona da casa com uma mistura de temor e reverência silenciosa. Eventualmente, contudo, o paciente se recupera, e à medida que ganha consciência o feitiço é desfeito. De volta a seu “eu” mal-humorado e grosseiro de sempre, o Sr. Riderhood repreende e ralha com todo o grupo, que àquela altura também incluía sua fi lha. Seus salvadores de outrora imediatamente recuam – seu respeito pela vida é eclipsado por seu desprezo por esse espécime particular dela. Nem neste mundo nem no outro, nota Dickens sardonicamente, Riderhood despertaria a compaixão de ninguém; “mas uma alma humana agonizante entre os dois pode fazê-lo facilmente” (Dickens, 1963, p. 444).
Como a estória de Dickens revela, o plano de imanência encontra-se precariamente suspenso entre as particularidades biográfi cas da vida e da morte, ou da consciência e do coma: uma suspensão em que essas particularidades – as decisões tomadas, trajetórias assumidas, fi ns alcançados, crimes cometidos
– são dissolvidas ou colocadas entre parênteses. Passa-se o mesmo, como já vimos, nas estórias dos caçadores indígenas que, durante a perseguição da presa, também se encontram numa zona de incerteza existencial onde a balança da vida e da morte, entre caçador e presa, pode pender para qualquer um dos
lados (Willerslev, 2007). Assim, andar pelo labirinto é como caminhar sobre teias de aranha, onde o próprio chão é um véu. Como a aranha, nos seguramos nela. Não que a vida, concebida desse modo, se restrinja a situações críticas. Como Deleuze (2001, p. 29, grifo do autor) não deixa de notar, “uma vida está em todo lugar, em todos os momentos por quais passa um determinado sujeito vivo”. Qual é portanto a relação entre os momentos virtuais da vida imanente, vivida por entre os caminhos do labirinto, e os momentos atuais, marcados por pontos de decisão no dédalo? Pois afi nal, não temos todos, a todo momento, um pé em ambos ao mesmo tempo?
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Parece-nos que o movimento de uma vida humana – talvez em contraste com as vidas de animais não humanos – seja temporalmente alongado. Sempre estamos, por assim dizer, constitucionalmente à frente de nós mesmos. A montante, concomitantemente com o aparecimento de coisas, está a imaginação, e vindo atrás está nossa apreensão perceptual de um mundo que já se encontra estabelecido, e no qual as coisas estão lá para aparecer. É por isso que em cada empreendimento e a cada momento estamos a um tempo totalmente preparados e completamente despreparados para o que vem à frente. Então, o que é que vai na frente, e o que é que segue? A resposta usual é dizer que, enquanto seres intencionais – ou seja, agentes – os humanos deliberamos antes de agir. Isso signifi ca, é claro, situá-los sobretudo no dédalo. Aí, a mente comanda e o corpo se submete mais ou menos mecanicamente às suas ordens. Nessa explicação intencionalista, o controle é cognitivo: se os humanos conduzem suas vidas, e não simplesmente as vivem, isso é produto da sua capacidade de conceber os planos antes da sua execução, algo de que os animais – ao menos para uma ciência da mente construída com base em princípios cartesianos – são considerados incapazes.
Priorizar o labirinto, contudo, signifi ca inverter essa relação temporal entre domínio e submissão. Aqui, a submissão conduz e o controle a segue. Ao invés de uma mente dominante que já conhece sua vontade conduzindo um corpo subserviente, na frente vai uma imaginação que sente o caminho adiante, tentando passar por um mundo ainda não formado, trazendo a reboque uma percepção já educada nos modos do mundo e habilidosa na observação e reação às suas propiciações. Uma vida que é conduzida se situa portanto na tensão entre submissão e domínio, imaginação e percepção, a vida que vivemos e as coisas que fazemos. A vida não é subserviente à agência, mas a agência é subserviente à vida. E essa lacuna entre as duas, entre o virtual e o atual – a distensão temporal na qual a imaginação sempre se adianta à percepção – não é mais, nem menos, que a escola, no seu signifi cado original (do grego scholè) de tempo livre.
Com isso, voltamos ao tema da educação, e à fi losofi a de Masschelein. “Educação”, argumenta ele, “é fazer ‘escola’ no sentido de scholè”. E enquanto arquiteto da scholè, o educador ou professor “é aquele que des-fi naliza, que desfaz a apropriação e a destinação do tempo” (Masschelein, 2011, p. 530). Ele ou ela é menos um guardião de fi ns do que um catalizador de começos, cuja tarefa é destravar a imaginação e lhe propiciar a liberdade de vagar sem um fim ou destino.
Não devemos, é claro, confundir escola nesse sentido com a instituição familiar às sociedades ocidentais conhecida pelo mesmo nome. Pois em sua história institucional, a escola tem se dedicado a conter a imaginação, a convertê-la numa capacidade de representar fi ns antes da sua consecução. O propósito da instituição tem sido, em larga medida, destinar o tempo, e não des-destiná-lo; completar a inculcação do conhecimento nas mentes dos alunos, e não desembaraçá-lo (Masschelein, 2011, p. 531). Tem sido afirmar a primazia do dédalo ante o labirinto, do controle ante a submissão. Desse modo, a instituição da escola e o tempo livre da scholè se comprometem, respectivamente, com os imperativos opostos de educare e educere: trazer para dentro e conduzir para fora, inculcação e exposição, intenção e atenção. O que a primeira apropria, a segunda coloca em suspenso. Ela introduz um adiamento na atividade direcionada para um fi m. Nesse plano de imanência, onde nada é mais o que era ou o que ainda virá a ser, tudo está, por assim dizer, em jogo. Inacabado, livre de fi ns e objetivos, comum a todos – o mundo se faz mais uma vez presente. Ele nos toca, para que nós – conjuntamente expostos ao seu toque (Masschelein, 2011, p. 533) – possamos viver com ele, em sua companhia. Em uma palavra, nós podemos corresponder com ele.
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Mas se scholè é o momento de sermos expostos todos juntos, é também o momento da tradição. Os andarilhos no labirinto – com os jovens aborígenes australianos que seguem as trilhas dos seus ancestrais na Hora do Sonho, onde o mundo era incipiente – refazem os passos de seus predecessores, tornando--se quem um dia foram. Todo imaginar é, nesse sentido, relembrar. Com os sábios nos monastérios da Europa medieval, passava-se algo muito parecido. Copiar um texto litúrgico com pena e tinta, ou lê-lo refazendo o traçado das letras com os dedos enquanto murmuravam-se os sons correspondentes, era seguir uma tradição no sentido original de traditio. Derivado do latim tradere
(“entregar”, “passar adiante”), tradição signifi cava algo muito diferente naquela época. Tratava-se menos de um corpo de conhecimento a ser passado de geração a geração do que de uma performance através da qual, ao modo de um retransmissor, era possível seguir em frente. Toda estória nas escrituras,
como toda trilha numa paisagem, deitava um caminho ao longo do qual esse movimento podia prosseguir, e cada trilha – cada estória – levava o leitor até certo ponto, antes de passar para o seguinte (Ingold, 2013a, p. 741).
Seja caminhando por uma trilha ou copiando um texto, o pedestre ou escriba se submete a uma linha que sempre o tira de posição. Não tendo uma meta, um fim em vista, sempre esperando, sempre presente, exposto e não obstante impressionado pelo mundo através do qual ele vaga, ele não tem nada a aprender nem nada a ensinar. Seu itinerário é um modo de vida, mas é um modo sem conteúdo a transmitir. Não há corpo de conhecimento a ser passado adiante. E porque não há nada a ser passado adiante, não há métodos para fazê-lo. Assim, entre a defi nição convencional de educação enquanto inculcação de conhecimento e o sentido de educação que exploramos aqui – conduzir para fora, para o mundo – está a diferença entre a metodologia rica e o que Masschelein (2010a, p. 49) chamou de “metodologia pobre”.
Ao ser empregada, a noção de metodologia transforma meios em fi ns, divorciando o conhecimento-enquanto-conteúdo dos modos através dos quais se conhece, e assim impondo um fechamento que é a própria antítese da abertura para o presente que a pedagogia pobre oferece. Se uma metodologia rica nos oferece conhecimento pronto, a pedagogia pobre abre nossas mentes para a sabedoria da experiência. Uma pertence à instituição da escola, e a outra, ao tempo da scholè; uma ao dédalo, a outra, ao labirinto. É a lógica do dédalo na opinião contemporânea que reduziu a cópia ao plágio, à usurpação ilegítima da agência de outrem, como se não houvesse nada mais no ato de escrever do que a escolha das palavras e sua execução mecânica. E a mesma lógica, se aplicada ao ato de caminhar, converte a perambulação exploratória da criança a caminho da escola numa disciplinada marcha de crocodilo que liga um ponto de partida até um destino preestabelecido. Na ponta do crocodilo, a professora se volta para encarar seus alunos, e, olhando para trás, articula uma perspectiva partindo do seu ponto de vista fi nal. Talvez antes mesmo de começar, ela já tenha lhes mostrado uma representação, em palavras e imagens, do que deveriam esperar. Esta é, com efeito, uma metodologia rica.
Trata-se contudo de uma metodologia que impõe um bloqueio ao movimento. Cara a cara, não há como seguir em frente. O conhecimento pula de cabeça em cabeça, mas as próprias cabeças – e os corpos aos quais elas pertencem – estão fi xas no lugar. Caminhar não é encarar e ser interpelado por aqueles que estão na frente, mas seguir aqueles que nos dão as costas. Copiar é parecido: participar através de movimentos de caneta, e não refletir ou assumir uma posição frente a um trabalho completo. O andarilho no labirinto, que se submete ao mundo e responde aos seus acenos, seguindo por onde outros já estiveram, pode seguir adiante, sem começo ou fim, abrindo caminho no fl uxo das coisas. Ele está, como diria Masschelein, verdadeiramente presente no presente. O preço dessa presença é a vulnerabilidade, mas a recompensa é uma compreensão, fundada na experiência imediata, daquilo que está além do conhecimento. É um entendimento a caminho da verdade. É como diz Greig do poeta: conhecendo pouco sobre o mundo, ele vê as coisas elas mesmas.
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